quarta-feira, 12 de março de 2008

De tanto que tu falas, Saramago, agora falo de ti


Saramago valoriza não os picos da história que cria, esmiúça os porquês, o caminho e não a chegada. Mira o mínimo e lá encontra o imenso, o intenso, o quase todo: uma recorrência, um ressentimento, o carinho, o peso do passado, a cobrança do presente, o expectante futuro. Vê e conta não sobre o quadro, mas sobre a pincelada dos pintores, por saber que não há melhor foco para perceber suas intenções. As encontra, as expõe e divaga.
Conta como se a história abrangesse o seu próprio tempo, cria um narrador que sabe se colocar de fora, as personagens parecem caminhar pelos seus próprios pés, imparcial. Presente em grande parte, divaga sobre os comportamentos de Cipriano Algor, do cão, da amoreira-preta, dos olhos que vêem do forno, e seu singular blá-blá-blá o leva a desatenção, como uma criança mimada quando os pais grudentos largam-na dos afagos e beijos e vem-cá-com-o-papai e fogem para longe, as personagens continuam em seu tempo, o autor corre e alcança a história, observa-a e divaga. divaga, vaga, vaga, ga. Se perde e corre até o combustível de seu desvario, agarra-o, e se perde, se perde, se perde.
Saramago pensa sobre muitas coisas, todas elas muito sutis e quase sempre universais, presentes aqui, ali e lá.
O capricho nos cantos miúdos dos acontecimentos faz com que as revelações venham sutis e bem lá do fundo das personagens, como é o caso do conflito (quase edipiano, se já não fosse ridículo usar esse conceito) entre pai-filha-cunhado, cunhado-sogro-esposa, mulher-homem-pai, no discurso caipira-burguês de Marçal, no definhamento vagaroso e inevitável da olaria, como é vagaroso todo o tempo que as personagens depositam no diálogo. Esse engajamento no afeto entre a família protagonista é desenhado a mãos de pluma, tão leve e cuidadosamente encrostada na obra "A caverna". E são sobre esses pontos leves que o sábio português ergue sua história. Esmiuçando, percebe os espinhos encravados causadores do retorno das dores, o mal resolvido regressa, irrita, põe em conflito por meios, palavras, gestos os mais diferentes, karmas postos são esmiuçados sem pressa, sem julgar onde aquilo irá chega, Saramago deve andar sem mapa quando escreve. nem tente olhar pra trás, procurando algo perdido ou esquecido, não vai encontrar, as histórias de Saramago são florestas de divagações, acompanhe-o dando passos bem dados que chegará até o final, garanto.

"Devia acender a luz, disse a si mesma, mas não se levantou. Nunca lhe tinham dito que a muitas pessoas no mundo se lhes mudou radicalmente o destino por esse gesto simples que é o ed acender ou apagar a luz, quer fosse uma candeia antiga, ou uma vela, ou um candeeiro de petróleo, ou uma lâmpada das modernas, é certo ter pensado que deveria levantar-se, que assim o estavam impondo as conveniências, mas o corpo negava-se, não se movia, recusava-se a cumprir a ordem da cabeça. Esta penumbra que havia faltado a Cipriano Algor para que se atrevesse finalmente a declarar, Gosto de si, Isaura, [...]." p.300

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