domingo, 4 de maio de 2008

O pequeno

Em homenagem à correria: um roteiro de um filme ainda pra ser rodado.

MOTORISTA E O PEQUENO

Um carro velho quebra numa estrada, depois de chutar e xingar o carro, o motorista pensa em pedir ajuda. Olha para todos os lados: imensidão de plantação de trigo. Tenta o celular: fora de área. Abre o capô. Já está anoitecendo. Adormece no banco de trás. Acorda com o pequeno batendo no vidro com as pontas dos dedos.
- Homem, homem! Por favor! Meu cacto, meu cacto...!
Assustado e sem entender direito o que o menino dizia, sai:
- Que que foi, garoto?
- Minha planta, - mostrando – meu cacto está morrendo!
- Ora, analisando – mas ele parece muito bem.
- ... mas está morrendo!
- Dê água então, diabo. – abrindo de novo a tampa do motor.
- Água?
- É, ué! – fuçando.
- ...! – indeciso – Tem certeza?
- Mas não é disso que planta precisa pra viver? Água!? – bebendo num cantil quase vazio.
- Me arrume, então, um pouco. – erguendo a planta.
Mede a água, mira o sol, olha pro motor:
- Tô fodido mesmo! – despejando até a última gota na planta.
O garoto corre alegre pro canto da estrada e o motorista volta na labuta. Depois de um tempo é puxado pela mão do pequeno:
- Acho que se enganou, ela continua morrendo.
- Não, não. Agora, com certeza, ela está melhor. Viva. – irritado com um parafuso.
- Mas está morrendo.
- Não, ela está vivendo!
- Também. – diz o garoto desatento com as palavras e atento com a planta.
- Olha, moleque, me perdoa, viu. Mas eu tô encrencado com uma coisa séria aqui.
- Ah, sim, sim. Desculpe.
E foi subindo, trigal adentro. O motorista por um tempo se arrepende da rispidez.
- Ô pequeno, escuta! Sabe onde posso encontrar ajuda?
- Não me siga, homem, estou tão perdido quanto você.
Entra no trigal. Ouve o barulho do carro funcionando e os gritos do motorista, lá atrás.
- Irra! Há, há!

ENCONTRO COM A VIDA/MORTE

Lá dos confins do horizonte, o pequeno avista uma figura de roupas esvoaçantes caminhando, soberba, em sua direção. Corre ansioso até ela. Seu rosto parece partido: metade transparece uma coisa e metade esconde outra coisa.
- Meu cacto está morrendo!
- Todos estão. Você também.
Pára o olhar pensando, em choque..., desperta:
- Ah, tudo bem! Só não queria que a minha planta tivesse de passar por isso..., ela está morrendo. – triste.
- Ora, mas para ela estar viva ela tem de continuar morrendo, garoto! – irritada.
O pequeno continua a falar, desatento.
- Meu cacto está exposto a esses insetos horrorosos, preferia um mundo sem eles!
- Não dá para afirmar amor à vida e toda sua grande sutileza se continua a esmagar baratas em prol de seu insignificante nojo.
O garoto aquieta. Ela continua, com voz suave:
- Ah, o que você procura não é a mim e sim a imortalidade. Caminhe até o segundo descampado onde está a casa do velho Raro, é o único conhecido que menosprezou os meus conselhos, agora sofre encurvado pelo peso já insuportável do tempo em suas costas.
- Por onde devo ir então, mulher? Qual é o caminho pra encontrar esse homem?
- Hmmm..., - irritada de desacreditada - uma banalidade que a todo tempo digo, mas ninguém presta atenção: o caminho – virando o garoto para as pegadas que fez percorrendo pelo trigal – se faz ao caminhar. Vai! Só duas coisas podem barrar a sua busca: o medo e a preguiça. Não pare! – já gritando. Senão nos veremos de novo!
ENCONTRO COM A PRESSA

Avista uma árvore - uma ilha em meio a um descampado. Na sua sombra está sentada uma mulher de cabelos mal amarrados, usa uma camisa de um verde apagado com mangas maiores que o exigido pelos braços. Fuma um cigarro. Envolta de seu pescoço há uma corda que está amarrada no galho que faz a sombra. Sua muito, funga o nariz.
- Nem fale..., logo se vê que não sabe por onde anda. O que procura? – se expressa muito rápido entre tragadas profundas.
- Impressão sua. Não estou perdido. Quero salvar minha planta. Vou até o velho Raro.
- Ah! Nem perca tempo com aquele dorminhoco. Não tem nem curiosidade. Não quis nem conhecer o que vem depois daqui. – exibindo a corda depois de tira-la do pescoço. Está condenado à mesmice. Coitado! – colocando de novo a corda. Já eu tenho pressa! Quero ir logo. Chega disso daqui...
O garoto mantém um pé atrás, mas se interessa.
- ... conta-se que ele tem até uma corcunda horrível – e funga o nariz e traga profundo. E mora muito longe... Olha, garoto, nem perca seu tempo com aquele eterno e espaçoso ninguém. Logo ali, depois daquele morro, moram dois gêmeos muito antigos, dizem que passam dos duzentos anos, já. Lá eles sabem a muito tempo do que uma planta precisa. Mas..., se for, vai logo!
Puxa e solta uma fumaça que paira por toda a sombra da árvore. O pequeno sai incomodado.

ENCONTRO COM OS GÊMEOS

Num descampado arenoso o pequeno encontra uma casa, muito suja e velha, com janelas de madeira roída. Se aproxima a passos ressabiados, se escondendo atrás de árvores desfolhadas. Ouvem-se sussurros lá dentro, mas ninguém sai. O pequeno percebe que é observado pela fresta da janela.
- Sai! Sai! – gritos horríveis. Eu sei quem você é! Vai embora! – e bate a janela.
A porta abre. Sai uma mulher, aparência grotesca, desgrenhada. Olha na direção do pequeno e faz um sinal aborrecido com as mãos de “vêm, vêm, entra”. O pequeno fica estático. A mulher se injuria e grita:
- Ô, se quiser entrar a porta tá aberta. Sai daí logo que já tá me cansando. Entre e feche a porta. – vai pra dentro resmungando.
O pequeno, indeciso, só decide entrar quando olha pra sua planta. Por dentro a casa é escura, apesar do sol lá fora, suja e poeirenta. Percebe-se um vulto passar de uma sombra a outra, como um imenso rato assustado.
- Você tá louco! Fecha essa porta, fecha essa porta!
A voz berrante é a mesma da janela, vem de uns olhos esbugalhados perdidos na sombra. É um homem, muito magro, cadavérico, com pouco cabelo escorrendo pela testa. O pequeno fecha a porta.
- Passa o trinco e senta ali, ali no banco. Não! Ali! Ali...! – arfa. O que é isso daí na sua mão? Cuidado com isso, hein! – gagueja, apavorado.
- É minha planta. Vim aqui porque soube sobre vocês: os gêmeos que já passam dos duzentos anos. Preciso que me ensinem, meu cacto está morrendo.
- Ele está doente!?! – sobressalta pra trás.
- Não, nunca.
Uma voz vem do outro cômodo:
- Ei, garoto, vem até aqui!
A senhora está deitada num trapo, fazendo de um cachorro travesseiro. Pelo quarto todo têm utensílios domésticos feitos de improviso imediato, todos muito desorganizados.
- Então é isso... Olhe, largue essa planta num canto, ela deve estar cansada de tanta andança.
O menino se alegra, aquelas palavras tinham sentido e finalmente o estavam ensinando a resolver seu problema.
- Aqui nossa história é longa porque procuramos não nos desgastarmos e sempre nos preocupamos em leva-la com a máxima proteção. Deite-se, - indicando – mas fique atento. Senão você corre riscos. Sua vontade só causou cansaços pra sua planta e pra você, até agora. Mande ela se calar. Vigie-a e vai entender nosso segredo. – e fechou os olhos.
O garoto amontoou umas folhas secas e adormeceu, num canto. Passam-se dois dias.
O pequeno acorda com o cadavérico quase em cima dele, batendo com um galho seco na rachadura da parede, quando percebe que o pequeno acorda salta pra trás com medo:
- Parece que vi um inseto escorregando aí pra trás...
A mulher ainda está deitada, não há mais cachorro, ela está estirada, mas seus olhos estão abertos, olham de um lado pra outro, não emite um pio. O pequeno levanta bocejando, cabelo desgrenhado, roupa amassada e caminha arrastando os pés, até onde estava sua planta. Tinha aberto uma flor. O garoto desperta, corre avisar com um sorriso. Mais dois dias se passa. E o pequeno não se agüenta em seu canto. Vai olhar a planta: está murcha, a flor pendendo. Começa a se preocupar.
- Preciso fazer alguma coisa. Está piorando.
- Ora, pequeno, deite aí vai, fique em silêncio. – e rola pro lado da parede.
O cadavérico entra numa sombra, uma penumbra que parece que sempre o acompanha:
- Ouve, ouve. – ri, neurótico. É melhor deitar. – o pedaço de galho seco parece agora ameaçador. Se está pensando em sair, sua planta pode não agüentar. Ai, ai, ai, quantas pestes a ameaçam lá fora. Deixa que eu molho ela. Shhh! Deita, quietinho! – e sai sussurrando, se arrastando. Vô jogar água nela, vô molhar a terra dela...
O pequeno se deita agarrando os joelhos, seus olhos estão atentos, como da senhora desgrenhada.
Noutro dia: a senhora está deitada na varanda, num canto, virada pra parede, toda encolhida. O pequeno olha pra baixo, riscando a terra, cabisbaixo. Não se vê o cadavérico. Repara num poste, lá longe, nunca o tinha percebido, alguma coisa se mexe lá em cima, parece um pássaro escuro. A curiosidade aumenta. Pisca um brilho refletido lá no topo, surpreende e exalta o garoto. Confere os descuidos dos outros dois e corre, a passos ressabiados, até lá.

ENCONTRO COM O DESEJO

Em cima do poste está agarrado um homem narigudo, cabelos longos, barba, magro, de chapéu e roupas escuras. Brinca, com um espelho, com o reflexo do sol. Sua fala soa com indiferença, mas seu olhar é firme e interessado.
- Que que você tá fazendo aí em cima?
- Eu...? – estranhando a pergunta. – Não sei... Só sei que quero estar aqui. O que faz um pequeno tão pequeno em lugar tão poeirento?
- Estou aprendendo com os gêmeos, tentando salvar meu cacto.
- Então acho melhor procurar outros professores, porque, daqui de onde estou, só o vejo deitado pelos cantos.
- Mas a lição é essa..., tenho de evitar minhas andanças...
- Ora, garoto! Você pensa que encontrou o que quer, mas parou no meio do caminho. Vai! Saia daqui! Continua a sua busca.
- Mas pra onde? Ninguém me diz!
- Ah...., pequeno, esperar que alguém guie a sua conduta é uma pretensão que te barra. Não percebe que sem a sua busca você nem existe? Só quando você reconhece a sua busca e a carrega como uma bússola pro seu caminho é que está livre. Porque, no fundo, você não tem escolha, meu pequeno garoto, você só faz apresentar a encruzilhada: “veja como é cheiroso o caminho da direita, ah! mas é toda de pedregulhos..., veja, por outro lado, como é larga e limpa a estrada da esquerda, mas me parece muito deserta...”. Rá! No fim, quem dita o veredicto de qual caminho seguir é um juiz que você nem imagina de onde vêm. Reconheça esse juiz, esse que dita sua busca e siga-o. Vai! Anda!
O pequeno volta, então. Quer pegar sua planta para continuar o caminho. Entra nas pontas dos pés. Não vê ninguém, pega sua planta, cuidadoso com a silenciosidade. Leva um susto, de repente, a senhora aparece de pé no batente da porta de um dos cômodos, só metade de seu corpo se vê, ela fica olhando, amorfa, boca pendendo, olho dopado. Milésimos depois aparece o cadavérico de um a sombra, gritando, com um galho seco empunhado:
- Sai! Sai! Vai embora! O garoto se assusta e sai correndo, rindo, rindo, sente que o homem jogou o galho que pegou na porta, que já ficou pra trás.

ENCONTRO COM O VELHO RARO

Já está muito próximo de anoitecer. Em outro descampado o pequeno percebe uma casa, esta parece mais viva. Sentado, tranqüilo e desatento, na varanda, um homem muito baixo, cabelos longos, com feições élficas, corta com uma lâmina o fumo-de-corda. O pequeno se aproxima, muito seguro, com as palavras já escolhidas.
- Você pode me ajudar. – a afirmação soa como uma exigência e não um pedido. Enquanto continuar a falar o homem baixo vai ficar olhando firmemente, estático, analisando os movimentos do pequeno. Minha planta, precisa de ajuda, me aconselharam vir até aqui e...
O baixo homem interrompe a explicação, apontando a porta de entrada. O pequeno olha e faz um balanço de cabeça que diz compreender. Entra. O homem volta a picar o fumo. Velho Raro está deitado de costas, olhos fechados, em cima de uma mesa. O pequeno chega muito silenciosamente e se senta num canto, olha a sua volta, um ambiente limpo de qualquer objeto, apenas - iluminando o cômodo - duas velas cintilam. Suspira e baixa a cabeça, resignado a esperar. Depois de alguns segundos, os olhos do velho se abrem, ele não mexe mais do que a cabeça para observar o garoto, que tenta cochilar, volta e fecha os olhos.
Quando a noite já cai por inteiro, lá fora o homem baixo toca uma flauta doce, o garoto está cochilando, o velho fala, ainda com os olhos fechados:
- Então, tem um problema com a sua planta?
O pequeno desperta, desconsertado:
- Tenho sim... Quero que me ensine a torná-la imortal. – pára a exigência, assustado com o olhar (doce e resignado) do velho. Quero torná-la tão forte contra a morte que nada vai machucá-la, pra tudo vai estar preparada.
O velho solta um sussurro irônico e tenta se levantar, todo o corpo é um peso, parece não sentir dores, mas move-se muito lentamente.
- A imortalidade não é a máxima garantia de sobrevivência e adaptabilidade, senão a libélula-peixe, um bicho que come aquilo que defeca, seria quem mais se aproximaria desse segredo.
O garoto está atento, esperançoso.
- A coisa é mais singela, mais sutil, pequeno... – se aproxima da janela, faz um sinal irreconhecível.
O de expressões élficas entra. Apaga uma das velas e coloca a outra na mesa, trás uma cadeira - seus gestos são certeiros.
- Senta, garoto. – pede o velho. Preste atenção nisso daqui. – faz um gesto com dois dedos indicando para não tirar os olhos da chama.
A sala quase toda escura, só a pequena luz vinda da vela ilumina a feição dura do pequeno, tentando compreender a lição. A mão do garoto estava fria, percebeu que seu corpo inteiro tremia. A mão procurou a vela acesa. O calor parecia que chegava atrasado, o frio impedia que caminhasse. De repente, abre um sorriso fascinado: ao envesgar viu a chama duplicada, os olhos podiam ver, para sua visão a chama que sempre estivera escondida agora existe, daí o sorriso. O velho, então, se aproxima e fala muito baixo:
- Acreditar com os outros sentidos? Pode tocá-la?
O garoto tenta, afoito.
- Porque existiria um mundo onde apenas a visão acreditaria na existência desta outra chama, garoto? É possível que em cada sentido existam várias realidades acontecendo ao mesmo tempo, e que você acaba por escolher uma destas combinações de realidades. Se sua visão focaliza duas chamas, por que não acreditar numa realidade assim? Será que todos os sentidos teriam que acreditar conjuntamente para que você entre no mundo escolhido?
- Mas como vou enganar meus outros sentidos? A visão é fácil, é só continuar vesgo.
- Mas se o pequeno colocasse uma blusa e não sentisse mais frio, estaria enganando o corpo.
- Engano de quem? A quem engano? Não sou eu quem está com frio?
- O que é o frio sem um corpo para senti-lo, pequeno? O frio não existe sem suas sensações. Seu corpo é quem sofre, daí sabe que deve se aquecer para proteger-se, manter-se vivo. O frio é um aviso do sopro da vida, indicando como mantê-la. Ensinando a todo o momento como permanecer. Você sofre por saber que provavelmente não existiria mais. Morreria. Ora, se é a vida indicando como mantê-la, o que você poderia fazer se não segui-la? Acontece que agente acaba se acostumando com uma sensação de mundo e acabamos por banalizá-las. O frio, por exemplo, se você parasse para percebê-lo logo ficaria claro que você agia instintivamente colocando essa blusa. Nem observar como ele funciona você observava. O que ele é realmente? Ele não existe. Você que o cria. Aí é que ele passa a existir. O vento, sim, existe a par de seu corpo e de sua mente. Você o influencia, mas de forma muito limitada. Como o bater de uma borboleta pode influencia-lo muito mais. Mas..., agora, o frio é só de seu corpo. E é melhor você agir como o frio lhe pede, pois é uma mensagem, ditada pelo vento, pelo ar.
- É. Vixi!
- Aprenda a escutar todos os avisos que lhe são ditados, a todo o momento, e assim aprenderá a permanecer. – e, num sopro, apagou a chama onde os olhos do garoto estavam focados.

AMANHECE

Amanhece sozinho na casa, o pequeno. Sai esfregando os olhos. Nos fundos, encontra o élfico cuidando de um vaso. Percebe seu cacto tomando sol. O homem vai até ele e recolhe algumas sementes da flor e as colocam na terra do vaso que estava preparando. O garoto olha tudo como se não estivesse ali. O velho surge – assusta o pequeno pela aparição repentina – segurando um copo d’água. No vaso, joga cuidadosamente a água, só então se dirige ao pequeno:
- Tome..., - entregando o vaso - a melhor dose de eternidade que você pode oferecer a sua planta.
O garoto recolhe o presente.
- Era isso que estava perguntando..., e ninguém sabia me responder.
O velho só afirmou com um sorriso, o qual o pequeno respondeu. O homem élfico também abriu os dentes dele. E ficaram os três, ali no final da manhã, saboreando a simples resposta como fim da busca do garoto.

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