terça-feira, 20 de maio de 2008

O garoto de olhar diagonal

Podia estar enchendo a cara, vendo TV, assobiando, mas estou escrevendo... então, preste atenção.
O parteiro chegou na pedreira de manhã e disse que o menino que esperava vinha com um defeito. Provavelmente pelo esforço, já tinha avisado pra parar de levantar peso: assentar tijolo de barriga, onde já se viu? Não deu atenção e deu naquilo: o menino ia nascer com o cérebro de ponta cabeça, um caso raríssimo... um em cada muitos... Foi pra casa chorar com as almofadas.
O menino nasceu calado, nem com as palmadas berrou, nos exames tudo estava cheio de normalidade, só olhando algum tempo que dava pra notar um descompasso das alturas da orelha, uma muito encima ou outra muito embaixo, o que fazia parecer que o menino sempre olhava de soslaio, uma encanação diagonal, mesmo quando deitava reto como as múmias fazem.
Crescendo, viu-se que o menino nada mais tinha de atrapalhado, ao contrário: ele que atrapalhava os outros. Alguém que sentasse do seu lado puxando conversa, em dois tempos saía dali torto. Como tentativa de conversa banal virava uma lição de vida, era de se ver.
- Que calorão, hein!
- Dentro de você? - entortava.
A pessoa saía ofendida com o que de início era um absurdo, mas ficava o resto da tarde pensando até ficar triste com a própria estupidez e com a perda da oportunidade de poder aprender sobre si mesmo um pouco mais. Tanto que quando avistou de novo o menino ali, esperando o ônibus, parou os passos apressados de compromisso e foi chegando com o máximo de respeito que sua brutalidade acelerada permitia. Tentava um assunto sério, preocupante, a poluição ou algo do tipo, e o menino com três palavras mostrava que a pessoa se levava a sério demais. Tentava uma piada, mas o menino não ria, porque realmente aquilo não tinha nada de engraçado e ainda desvendava claramente que aquele sorriso da pessoa era um disfarce bem costurado pra cobrir o desespero da falta de graça que tinha seu olhar sobre o mundo e que aquele formato de humor não vinha sincero, mas de alguma novela, de uma propaganda ou de gerações atrás. Tentava verbalizar aquelas sacadas dolorosas que tinha sobre si e o menino ironizava com trejeitos de psicólogo bufão.
Era difícil ficar do lado do garoto, cada hora um murro no próprio estômago, mas era irresistível. Todos que o circundavam, percebia-se, implorava por aqueles murros, disfarçando, falando qualquer coisa, convidando-o pros lugares mais desejáveis, mas o garoto não ia quase nunca, misterioso, e sua não presença era sempre entendida como uma crítica a tal ambiente ou às pessoas que por ali passavam, mas ele nunca pensava nessas coisas, não ia porque não queria e pronto. Onde ele fosse, ali sim era um lugar de se estar, se ele fosse constantemente então... era começar a observar cada canto do recinto, diagnosticando o que caracterizaria um lugar merecedor de visitas.
Aquela tranqüilidade no fazer o cigarro, no contar uma história, lavar um tomate, de se apegar às coisas tão maravilhosas que antes nem a tinha se quer reparado...
- Olha como é descompassado o canto desse sabiá. Parece um...
E fazia aquelas comparações incomparáveis de tão imprevisíveis, o que fazia soar fantástico no ouvido de quem nem lembrar como era um sabiá lembrava, muito menos reparar que ali do lado tinha um assobio quadrado, agora insuportável de tão presente. Daí a pessoa saía dali nervosa por ter deixado perder sua intimidade com as coisas do mundo, exercitava duas semanas os ouvidos, lia sobre passarinhos no google, se inflava de agora entender sobre o assunto e ia andando com os ouvidos pulsando de tão abertos e os olhos lacrimejando do mundo ser tão grandioso em sua sutileza. Raros eram os que assumiam o mérito ao garoto que, por sua vez, nem desconfiava que era seu, ou mesmo que tinha sugerido qualquer coisa. Ele só vivia, muito parecido com aquilo que maioria de nós fazemos, mas tinha essa capacidade ingênua de apontar tudo aquilo que vale a pena se apegar na vida e em si mesmo. Aos que o circundavam, ele parecia que quase sempre acertava, mesmo quando revelava uma ridícula ignorância. Aquilo que ignorava virava indigno de relevância.
- Porque eu dava atenção pra isso? - se perguntavam, sempre por dentro.
E o garoto permanecia com a ignorância porque ninguém tinha coragem de responder seriamente sobre algo que até o momento não tinha sido importante pro menino, também porque percebiam que, no fundo, também não sabiam do que aquilo se tratava, daí escondiam a estupidez com o menosprezo, fingindo um descaso, uma desimportância com o causo.
Conversar com o menino era sempre um mal estar porque sempre subia uma ânsia, uma necessidade inadiável de vomitar a si mesmo. O garoto era paradigmático. Se o topasse, você veria que seus olhos exigem, pra começo de conversa, que se retire todas suas cascas e que se perceba como quase oco. Daí então, talvez, ele lhe convide pra sentar e até lhe ofereça um cigarro. Ofendido com aquela destreza, você ataca, se sentido ameaçado sem nem saber pelo quê e, no meio do ataque você percebe que sua ofensiva é frágil, que nem era preciso nada daquilo e que está brigando sozinho. Então se recolhe, pensando em outra estratégia para garantir a fortaleza que lhe esconde de si. É quando percebe que é melhor deixar que ela caia e passa até a colaborar, derrubando as paredes à marteladas. E de "que dupla de orelhas bizarra esse coitado tem", arrogante, vai para "nem respirar direito eu sei", indo embora de bola baixa.

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