terça-feira, 20 de maio de 2008

O garoto de olhar diagonal

Podia estar enchendo a cara, vendo TV, assobiando, mas estou escrevendo... então, preste atenção.
O parteiro chegou na pedreira de manhã e disse que o menino que esperava vinha com um defeito. Provavelmente pelo esforço, já tinha avisado pra parar de levantar peso: assentar tijolo de barriga, onde já se viu? Não deu atenção e deu naquilo: o menino ia nascer com o cérebro de ponta cabeça, um caso raríssimo... um em cada muitos... Foi pra casa chorar com as almofadas.
O menino nasceu calado, nem com as palmadas berrou, nos exames tudo estava cheio de normalidade, só olhando algum tempo que dava pra notar um descompasso das alturas da orelha, uma muito encima ou outra muito embaixo, o que fazia parecer que o menino sempre olhava de soslaio, uma encanação diagonal, mesmo quando deitava reto como as múmias fazem.
Crescendo, viu-se que o menino nada mais tinha de atrapalhado, ao contrário: ele que atrapalhava os outros. Alguém que sentasse do seu lado puxando conversa, em dois tempos saía dali torto. Como tentativa de conversa banal virava uma lição de vida, era de se ver.
- Que calorão, hein!
- Dentro de você? - entortava.
A pessoa saía ofendida com o que de início era um absurdo, mas ficava o resto da tarde pensando até ficar triste com a própria estupidez e com a perda da oportunidade de poder aprender sobre si mesmo um pouco mais. Tanto que quando avistou de novo o menino ali, esperando o ônibus, parou os passos apressados de compromisso e foi chegando com o máximo de respeito que sua brutalidade acelerada permitia. Tentava um assunto sério, preocupante, a poluição ou algo do tipo, e o menino com três palavras mostrava que a pessoa se levava a sério demais. Tentava uma piada, mas o menino não ria, porque realmente aquilo não tinha nada de engraçado e ainda desvendava claramente que aquele sorriso da pessoa era um disfarce bem costurado pra cobrir o desespero da falta de graça que tinha seu olhar sobre o mundo e que aquele formato de humor não vinha sincero, mas de alguma novela, de uma propaganda ou de gerações atrás. Tentava verbalizar aquelas sacadas dolorosas que tinha sobre si e o menino ironizava com trejeitos de psicólogo bufão.
Era difícil ficar do lado do garoto, cada hora um murro no próprio estômago, mas era irresistível. Todos que o circundavam, percebia-se, implorava por aqueles murros, disfarçando, falando qualquer coisa, convidando-o pros lugares mais desejáveis, mas o garoto não ia quase nunca, misterioso, e sua não presença era sempre entendida como uma crítica a tal ambiente ou às pessoas que por ali passavam, mas ele nunca pensava nessas coisas, não ia porque não queria e pronto. Onde ele fosse, ali sim era um lugar de se estar, se ele fosse constantemente então... era começar a observar cada canto do recinto, diagnosticando o que caracterizaria um lugar merecedor de visitas.
Aquela tranqüilidade no fazer o cigarro, no contar uma história, lavar um tomate, de se apegar às coisas tão maravilhosas que antes nem a tinha se quer reparado...
- Olha como é descompassado o canto desse sabiá. Parece um...
E fazia aquelas comparações incomparáveis de tão imprevisíveis, o que fazia soar fantástico no ouvido de quem nem lembrar como era um sabiá lembrava, muito menos reparar que ali do lado tinha um assobio quadrado, agora insuportável de tão presente. Daí a pessoa saía dali nervosa por ter deixado perder sua intimidade com as coisas do mundo, exercitava duas semanas os ouvidos, lia sobre passarinhos no google, se inflava de agora entender sobre o assunto e ia andando com os ouvidos pulsando de tão abertos e os olhos lacrimejando do mundo ser tão grandioso em sua sutileza. Raros eram os que assumiam o mérito ao garoto que, por sua vez, nem desconfiava que era seu, ou mesmo que tinha sugerido qualquer coisa. Ele só vivia, muito parecido com aquilo que maioria de nós fazemos, mas tinha essa capacidade ingênua de apontar tudo aquilo que vale a pena se apegar na vida e em si mesmo. Aos que o circundavam, ele parecia que quase sempre acertava, mesmo quando revelava uma ridícula ignorância. Aquilo que ignorava virava indigno de relevância.
- Porque eu dava atenção pra isso? - se perguntavam, sempre por dentro.
E o garoto permanecia com a ignorância porque ninguém tinha coragem de responder seriamente sobre algo que até o momento não tinha sido importante pro menino, também porque percebiam que, no fundo, também não sabiam do que aquilo se tratava, daí escondiam a estupidez com o menosprezo, fingindo um descaso, uma desimportância com o causo.
Conversar com o menino era sempre um mal estar porque sempre subia uma ânsia, uma necessidade inadiável de vomitar a si mesmo. O garoto era paradigmático. Se o topasse, você veria que seus olhos exigem, pra começo de conversa, que se retire todas suas cascas e que se perceba como quase oco. Daí então, talvez, ele lhe convide pra sentar e até lhe ofereça um cigarro. Ofendido com aquela destreza, você ataca, se sentido ameaçado sem nem saber pelo quê e, no meio do ataque você percebe que sua ofensiva é frágil, que nem era preciso nada daquilo e que está brigando sozinho. Então se recolhe, pensando em outra estratégia para garantir a fortaleza que lhe esconde de si. É quando percebe que é melhor deixar que ela caia e passa até a colaborar, derrubando as paredes à marteladas. E de "que dupla de orelhas bizarra esse coitado tem", arrogante, vai para "nem respirar direito eu sei", indo embora de bola baixa.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

diário das filmagens

começamos bem, o ensaio me deu um sorriso pro resto do dia, todo mundo se incorporou, incrivel!, numa segunda (manhãzinha) filmando os planos-sequências, pensando nos jogos de imagens (conceito repetido por mim, num sei se inventei, que butter desaprova), num outro dia não reparamos que na casa (cenário do encontro com os gêmeos) não possui energia elétrica, tomada, e quando começa a escurecer parece que já escureceu, o sol despenca, não se põe.
o cacto, paulo, "tá meio cansado de tanta andança".
filmamos a cena em que o pequeno encontra a pressa, com muita pressa. intão tá.
a cena com os gêmeos fizemos, parte dela ficaram lindas. as fotografias estão sendo bem definidas, pausamente criadas, lentamente observadas, o processo teve de se assumir mais lento. o que é arte, não é? com olhos por cima do ombro no "vai vai que preciso almoçar", num sai.
único problema foi com o cancelamento do apoio dos transportes na uel, apoio de urubu num quero mesmo. "brigar agora, luis. ficava quéto, menino!" É..., agora já foi e se num tivesse ido teria sido de novo, em outro momento.
mas, olha, como disse a Elis, num é que tá indo mesmo, tá saindo do universo mental seu e tá ganhando corpo. E que corpo! Parece Wim Wenders segurado pelas pernas pelo Zé do Caixão. Tudo meio bronze. Até agora.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Joyce na lata-de-sardinha

Em 2001, um grupo de jovens atores, promoveu a performance a que demos o nome de "Os Green Men" tendo como função ler Joyce para um público diverso. Estas leituras foram feitas nos ônibus circular 02 A e B, de Belo Horizonte e na estação Diamante, no bairro Barreiro. A intenção desta comemoração foi retirar James Joyce dos espaços fechados e acadêmicos, testando sua linguagem dentro dos ônibus para um público móvel, que subia e descia, e os participantes faziam uma parada nos pontos finais da periferia. Os atores pintaram a cara verde, e criaram suas próprias roupas tendo como subtexto a linguagem dos sonhos. Cada um podia vestir-se de acordo com sua fantasia, tendo apenas a cor verde, considerada como a cor da Irlanda, um elemento unificador. O texto foi compilado a partir da tradução de Donald Schüller e se referia ao primeiro livro do Finnegans Wake. O texto lido, foi escolhido e editado por Ione de Medeiros:

..................................................."Atenção! Atenção! Temos porora somadas mil e umestórias, muirecontadas, do mesmo,urra! urra urra! O aquoso pinguço serragigante Tão certo porém comabel comeu as rubrossantas maçãs devita, (o que com buzinaços infernais de rolls-réus,pipedecarros,rolo-de-rodas,triquetraquetrens,roncodemotos,poplaymóveis,transporatadoras,e o tira de capa, e a mordidela de cadela das voluntárias da pátria na orelha lá dele e o encanto das boates, percurs, charmantes meiasfabris a doze pratas a dúzia, e fumaça –bus deslizando aolongo davenida dos Andradas e trombadinhas trombando em torno da praça sete-te-cala-meu-chapa- e o fumo e a fama e a forma dos indígenos urbanos guardas—do capitólio, do palácio da liberdade escavadores de cascalho, e quantos atropelos e apagões quantos apelos um para mim um para ti indo advertindo plin pleno delicor. O coco pesava, a cuia tremia na cachaça dim!... Rolou pela escada. Dom! Qual múmia caiu duro Dum! Mastabatom, mas-tá-bom. Depois do casório começa o velório na colina pratodomundo ver. Eu o teria dito macool..... Macool ..Porra por quiski ocê morreu? Foi de sede em terça. Merdinha ? Chopes aos choupos no do finado veludo velório, estrelas de tod anação. Havia à porfia, pedreiros, casados, delgados, deus éosenhor violeiros, marinheiros, cinemen, perueiros, camelots, os vende-se ouro, os cortacabeloadoisreal, os limpadores de parabrizas, osmachofemeos e os menores deidade, de tudo, os não estôaqui prarobá e todos giravam, e todos giravam na mais alto-falante showialidade. Alguns no tam-tam do tamborim, e mais camcam no pranto. Pra cima no batuque pra baixo no muque. Adonde neste bosta y mundo escuitará loisa igual? Acomodaram os salmão em seu derradiro leito. Ué? Ta duro mas soberbo. Se houve cabra alegre no tablado era o finnado. Bem, eli repousa estendido de costas como um desproporcionl babelinho, vamos vê-lo se vemos, se pegamos se queremos, se assim te parece. E lá! Lamento Lamento (Hoá-Hoá-Hoá!) em suim-suam-sum e por toda a livvy longa noite a dele dolorida noite (que bello! Que bello!) O velam. O açúcar do pão me daí hoje mais o leite de d'amazonas. Ohmém. Assim cerveja.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Ventos que sopram do norte,
outros que arrastam do sul
Se não nos abraçarmos,
quem se perderá de quem?

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Lia de Itamaracá não conta no PIB

O Produto Interno Bruto brasileiro cresceu mais de 5% em 2007 e este foi motivo para celebrações vindas de todos os lados. Tal avanço econômico, somado a números bastante positivos no mercado de trabalho e investimentos em capital fixo, que aumentam a capacidade produtiva do país, também suscita certa onda de comemorações entusiasmadas ou comedidas. Contudo, o discurso comum só se torna possível porque enxerga crescimento econômico como equivalente ao aumento da riqueza da sociedade.

De fato, os números da economia brasileira para o ano passado aparentam ser encantadores. Entretanto, encantadora de verdade foi a presença de Lia de Itamaracá nas dependências do Sesc Pompéia, em São Paulo, um dia após a divulgação dos números da economia brasileira pelo IBGE. Uma mulher enorme, com cabelos longos, trançados orgulhosamente em estilo afro. Nossa mama África, nobremente vestida sob um longo vestido colorido; rainha majestosa, senhora de sua raça, um pouco - muito de seu povo e de sua cultura.

Nessa noite, ninguém parecia estar muito interessado com o “fantástico” resultado do PIB. Apenas esperavam Lia ocupar o palco, entoando as cirandas repletas da alma de sua gente. Entrou com andar calmo, nem muito lento, mas também sem arrastar chinela. Deu seu primeiro boa noite, com sorriso do tamanho de sua arte. Sendo a primeira resposta do público, que a essa altura já havia se levantado e tomado o salão da choperia, sonoramente tímida, ela repetiu a saudação alongando-a e elevando o volume da voz: boooa noooite, São Paulo! Dessa vez, a platéia correspondeu à altura e os primeiros batuques de ciranda puderam começar.

A força da música de Lia é inquestionável. O que se tem colocado cada vez mais em questão é validade da utilização do PIB como método de avaliação de progresso social ou baliza para se chegar à soma das riquezas geradas no país durante todo o ano. Aliás, estas definições freqüentemente utilizadas por governos, empresários, banqueiros etc., não são neutras. Deixam ocultas, sob um véu de vibração sóbria, típica dos economistas, as anomalias causadas por um tipo de crescimento que não respeita os limites dos recursos naturais, é agressivo à diversidade e acentua grandemente as exclusões sociais. De acordo com relatório da Organização do Comércio e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o PIB é um ícone de controvérsia estatística, porque “mede renda, mas não igualdade, mede crescimento, mas não destruição e ignora valores tais como coesão social e o meio ambiente”

Ao tomar o PIB como paradigma, ficamos órfãos de indicadores que apontem os caminhos para evitar a autodestruição ou que mostrem o prazer, a satisfação e o bem estar

Em outras palavras, pode-se dizer que o Produto Interno Bruto capta as dimensões típicas das relações mercantis, que são, portanto, passíveis de monetarização. O valor que pode ser gerado ao se proporcionar à sociedade amplo acesso a bens culturais como o espetáculo de Lia de Itamaracá, não pode ser calculado para efeito do PIB, a não ser pelos ingressos vendidos. [...]

Marcos Aurélio Souza (30/04/2008)

retirado do site do Le Monde - http://diplo.uol.com.br/2008-04,a2374


quarta-feira, 7 de maio de 2008

Chodorovinsky


'Ibrahim Chodorovinsky', nasceu na Birlinia, cidade de 4.500 habitantes no norte da Islândia. Professor de música desde os anos 50, participou do movimento Klämus (grupo inspirado no minimalismo desenvolvido na escolas holandesas de piano). Desde os anos 80, vem fazendo intervenções inusitadas em lugares ainda mais inusitados (banheiro de lojas, postos policiais...) sempre com propostas de "desconstrução da música tonal e de consultório de dentista" como cita comentando sua obra. Compôs quatro sinfonias, vinte peças para instrumentos de percursão e voz, além de cursos de música tribal Yi. No seu livro "Aprkruch" ("Cometa!", ainda sem tradução para o português) desenvolveu uma escala musical formadas só por notas microtonais, além de apresentar a "nota marrom", uma nota musical apresentada teoricamente que precisaria ser executada a uma temperatura acima de 85 graus para ser ouvida. Sua obra é considerada um marco na música européia oriental. Dos inumeros brasileiros que sofreram sua influencia, Hermeto Pascal foi um dos que cursaram seu workshop "Linpisjk or trystie" (Descobrindo o seu canto) que desenvolve desde o início dos anos 90. Ib Chodorovinsky é uma farsa poética.

retirado de "www.musicamaldita/institutominimas.pt"

domingo, 4 de maio de 2008

O pequeno

Em homenagem à correria: um roteiro de um filme ainda pra ser rodado.

MOTORISTA E O PEQUENO

Um carro velho quebra numa estrada, depois de chutar e xingar o carro, o motorista pensa em pedir ajuda. Olha para todos os lados: imensidão de plantação de trigo. Tenta o celular: fora de área. Abre o capô. Já está anoitecendo. Adormece no banco de trás. Acorda com o pequeno batendo no vidro com as pontas dos dedos.
- Homem, homem! Por favor! Meu cacto, meu cacto...!
Assustado e sem entender direito o que o menino dizia, sai:
- Que que foi, garoto?
- Minha planta, - mostrando – meu cacto está morrendo!
- Ora, analisando – mas ele parece muito bem.
- ... mas está morrendo!
- Dê água então, diabo. – abrindo de novo a tampa do motor.
- Água?
- É, ué! – fuçando.
- ...! – indeciso – Tem certeza?
- Mas não é disso que planta precisa pra viver? Água!? – bebendo num cantil quase vazio.
- Me arrume, então, um pouco. – erguendo a planta.
Mede a água, mira o sol, olha pro motor:
- Tô fodido mesmo! – despejando até a última gota na planta.
O garoto corre alegre pro canto da estrada e o motorista volta na labuta. Depois de um tempo é puxado pela mão do pequeno:
- Acho que se enganou, ela continua morrendo.
- Não, não. Agora, com certeza, ela está melhor. Viva. – irritado com um parafuso.
- Mas está morrendo.
- Não, ela está vivendo!
- Também. – diz o garoto desatento com as palavras e atento com a planta.
- Olha, moleque, me perdoa, viu. Mas eu tô encrencado com uma coisa séria aqui.
- Ah, sim, sim. Desculpe.
E foi subindo, trigal adentro. O motorista por um tempo se arrepende da rispidez.
- Ô pequeno, escuta! Sabe onde posso encontrar ajuda?
- Não me siga, homem, estou tão perdido quanto você.
Entra no trigal. Ouve o barulho do carro funcionando e os gritos do motorista, lá atrás.
- Irra! Há, há!

ENCONTRO COM A VIDA/MORTE

Lá dos confins do horizonte, o pequeno avista uma figura de roupas esvoaçantes caminhando, soberba, em sua direção. Corre ansioso até ela. Seu rosto parece partido: metade transparece uma coisa e metade esconde outra coisa.
- Meu cacto está morrendo!
- Todos estão. Você também.
Pára o olhar pensando, em choque..., desperta:
- Ah, tudo bem! Só não queria que a minha planta tivesse de passar por isso..., ela está morrendo. – triste.
- Ora, mas para ela estar viva ela tem de continuar morrendo, garoto! – irritada.
O pequeno continua a falar, desatento.
- Meu cacto está exposto a esses insetos horrorosos, preferia um mundo sem eles!
- Não dá para afirmar amor à vida e toda sua grande sutileza se continua a esmagar baratas em prol de seu insignificante nojo.
O garoto aquieta. Ela continua, com voz suave:
- Ah, o que você procura não é a mim e sim a imortalidade. Caminhe até o segundo descampado onde está a casa do velho Raro, é o único conhecido que menosprezou os meus conselhos, agora sofre encurvado pelo peso já insuportável do tempo em suas costas.
- Por onde devo ir então, mulher? Qual é o caminho pra encontrar esse homem?
- Hmmm..., - irritada de desacreditada - uma banalidade que a todo tempo digo, mas ninguém presta atenção: o caminho – virando o garoto para as pegadas que fez percorrendo pelo trigal – se faz ao caminhar. Vai! Só duas coisas podem barrar a sua busca: o medo e a preguiça. Não pare! – já gritando. Senão nos veremos de novo!
ENCONTRO COM A PRESSA

Avista uma árvore - uma ilha em meio a um descampado. Na sua sombra está sentada uma mulher de cabelos mal amarrados, usa uma camisa de um verde apagado com mangas maiores que o exigido pelos braços. Fuma um cigarro. Envolta de seu pescoço há uma corda que está amarrada no galho que faz a sombra. Sua muito, funga o nariz.
- Nem fale..., logo se vê que não sabe por onde anda. O que procura? – se expressa muito rápido entre tragadas profundas.
- Impressão sua. Não estou perdido. Quero salvar minha planta. Vou até o velho Raro.
- Ah! Nem perca tempo com aquele dorminhoco. Não tem nem curiosidade. Não quis nem conhecer o que vem depois daqui. – exibindo a corda depois de tira-la do pescoço. Está condenado à mesmice. Coitado! – colocando de novo a corda. Já eu tenho pressa! Quero ir logo. Chega disso daqui...
O garoto mantém um pé atrás, mas se interessa.
- ... conta-se que ele tem até uma corcunda horrível – e funga o nariz e traga profundo. E mora muito longe... Olha, garoto, nem perca seu tempo com aquele eterno e espaçoso ninguém. Logo ali, depois daquele morro, moram dois gêmeos muito antigos, dizem que passam dos duzentos anos, já. Lá eles sabem a muito tempo do que uma planta precisa. Mas..., se for, vai logo!
Puxa e solta uma fumaça que paira por toda a sombra da árvore. O pequeno sai incomodado.

ENCONTRO COM OS GÊMEOS

Num descampado arenoso o pequeno encontra uma casa, muito suja e velha, com janelas de madeira roída. Se aproxima a passos ressabiados, se escondendo atrás de árvores desfolhadas. Ouvem-se sussurros lá dentro, mas ninguém sai. O pequeno percebe que é observado pela fresta da janela.
- Sai! Sai! – gritos horríveis. Eu sei quem você é! Vai embora! – e bate a janela.
A porta abre. Sai uma mulher, aparência grotesca, desgrenhada. Olha na direção do pequeno e faz um sinal aborrecido com as mãos de “vêm, vêm, entra”. O pequeno fica estático. A mulher se injuria e grita:
- Ô, se quiser entrar a porta tá aberta. Sai daí logo que já tá me cansando. Entre e feche a porta. – vai pra dentro resmungando.
O pequeno, indeciso, só decide entrar quando olha pra sua planta. Por dentro a casa é escura, apesar do sol lá fora, suja e poeirenta. Percebe-se um vulto passar de uma sombra a outra, como um imenso rato assustado.
- Você tá louco! Fecha essa porta, fecha essa porta!
A voz berrante é a mesma da janela, vem de uns olhos esbugalhados perdidos na sombra. É um homem, muito magro, cadavérico, com pouco cabelo escorrendo pela testa. O pequeno fecha a porta.
- Passa o trinco e senta ali, ali no banco. Não! Ali! Ali...! – arfa. O que é isso daí na sua mão? Cuidado com isso, hein! – gagueja, apavorado.
- É minha planta. Vim aqui porque soube sobre vocês: os gêmeos que já passam dos duzentos anos. Preciso que me ensinem, meu cacto está morrendo.
- Ele está doente!?! – sobressalta pra trás.
- Não, nunca.
Uma voz vem do outro cômodo:
- Ei, garoto, vem até aqui!
A senhora está deitada num trapo, fazendo de um cachorro travesseiro. Pelo quarto todo têm utensílios domésticos feitos de improviso imediato, todos muito desorganizados.
- Então é isso... Olhe, largue essa planta num canto, ela deve estar cansada de tanta andança.
O menino se alegra, aquelas palavras tinham sentido e finalmente o estavam ensinando a resolver seu problema.
- Aqui nossa história é longa porque procuramos não nos desgastarmos e sempre nos preocupamos em leva-la com a máxima proteção. Deite-se, - indicando – mas fique atento. Senão você corre riscos. Sua vontade só causou cansaços pra sua planta e pra você, até agora. Mande ela se calar. Vigie-a e vai entender nosso segredo. – e fechou os olhos.
O garoto amontoou umas folhas secas e adormeceu, num canto. Passam-se dois dias.
O pequeno acorda com o cadavérico quase em cima dele, batendo com um galho seco na rachadura da parede, quando percebe que o pequeno acorda salta pra trás com medo:
- Parece que vi um inseto escorregando aí pra trás...
A mulher ainda está deitada, não há mais cachorro, ela está estirada, mas seus olhos estão abertos, olham de um lado pra outro, não emite um pio. O pequeno levanta bocejando, cabelo desgrenhado, roupa amassada e caminha arrastando os pés, até onde estava sua planta. Tinha aberto uma flor. O garoto desperta, corre avisar com um sorriso. Mais dois dias se passa. E o pequeno não se agüenta em seu canto. Vai olhar a planta: está murcha, a flor pendendo. Começa a se preocupar.
- Preciso fazer alguma coisa. Está piorando.
- Ora, pequeno, deite aí vai, fique em silêncio. – e rola pro lado da parede.
O cadavérico entra numa sombra, uma penumbra que parece que sempre o acompanha:
- Ouve, ouve. – ri, neurótico. É melhor deitar. – o pedaço de galho seco parece agora ameaçador. Se está pensando em sair, sua planta pode não agüentar. Ai, ai, ai, quantas pestes a ameaçam lá fora. Deixa que eu molho ela. Shhh! Deita, quietinho! – e sai sussurrando, se arrastando. Vô jogar água nela, vô molhar a terra dela...
O pequeno se deita agarrando os joelhos, seus olhos estão atentos, como da senhora desgrenhada.
Noutro dia: a senhora está deitada na varanda, num canto, virada pra parede, toda encolhida. O pequeno olha pra baixo, riscando a terra, cabisbaixo. Não se vê o cadavérico. Repara num poste, lá longe, nunca o tinha percebido, alguma coisa se mexe lá em cima, parece um pássaro escuro. A curiosidade aumenta. Pisca um brilho refletido lá no topo, surpreende e exalta o garoto. Confere os descuidos dos outros dois e corre, a passos ressabiados, até lá.

ENCONTRO COM O DESEJO

Em cima do poste está agarrado um homem narigudo, cabelos longos, barba, magro, de chapéu e roupas escuras. Brinca, com um espelho, com o reflexo do sol. Sua fala soa com indiferença, mas seu olhar é firme e interessado.
- Que que você tá fazendo aí em cima?
- Eu...? – estranhando a pergunta. – Não sei... Só sei que quero estar aqui. O que faz um pequeno tão pequeno em lugar tão poeirento?
- Estou aprendendo com os gêmeos, tentando salvar meu cacto.
- Então acho melhor procurar outros professores, porque, daqui de onde estou, só o vejo deitado pelos cantos.
- Mas a lição é essa..., tenho de evitar minhas andanças...
- Ora, garoto! Você pensa que encontrou o que quer, mas parou no meio do caminho. Vai! Saia daqui! Continua a sua busca.
- Mas pra onde? Ninguém me diz!
- Ah...., pequeno, esperar que alguém guie a sua conduta é uma pretensão que te barra. Não percebe que sem a sua busca você nem existe? Só quando você reconhece a sua busca e a carrega como uma bússola pro seu caminho é que está livre. Porque, no fundo, você não tem escolha, meu pequeno garoto, você só faz apresentar a encruzilhada: “veja como é cheiroso o caminho da direita, ah! mas é toda de pedregulhos..., veja, por outro lado, como é larga e limpa a estrada da esquerda, mas me parece muito deserta...”. Rá! No fim, quem dita o veredicto de qual caminho seguir é um juiz que você nem imagina de onde vêm. Reconheça esse juiz, esse que dita sua busca e siga-o. Vai! Anda!
O pequeno volta, então. Quer pegar sua planta para continuar o caminho. Entra nas pontas dos pés. Não vê ninguém, pega sua planta, cuidadoso com a silenciosidade. Leva um susto, de repente, a senhora aparece de pé no batente da porta de um dos cômodos, só metade de seu corpo se vê, ela fica olhando, amorfa, boca pendendo, olho dopado. Milésimos depois aparece o cadavérico de um a sombra, gritando, com um galho seco empunhado:
- Sai! Sai! Vai embora! O garoto se assusta e sai correndo, rindo, rindo, sente que o homem jogou o galho que pegou na porta, que já ficou pra trás.

ENCONTRO COM O VELHO RARO

Já está muito próximo de anoitecer. Em outro descampado o pequeno percebe uma casa, esta parece mais viva. Sentado, tranqüilo e desatento, na varanda, um homem muito baixo, cabelos longos, com feições élficas, corta com uma lâmina o fumo-de-corda. O pequeno se aproxima, muito seguro, com as palavras já escolhidas.
- Você pode me ajudar. – a afirmação soa como uma exigência e não um pedido. Enquanto continuar a falar o homem baixo vai ficar olhando firmemente, estático, analisando os movimentos do pequeno. Minha planta, precisa de ajuda, me aconselharam vir até aqui e...
O baixo homem interrompe a explicação, apontando a porta de entrada. O pequeno olha e faz um balanço de cabeça que diz compreender. Entra. O homem volta a picar o fumo. Velho Raro está deitado de costas, olhos fechados, em cima de uma mesa. O pequeno chega muito silenciosamente e se senta num canto, olha a sua volta, um ambiente limpo de qualquer objeto, apenas - iluminando o cômodo - duas velas cintilam. Suspira e baixa a cabeça, resignado a esperar. Depois de alguns segundos, os olhos do velho se abrem, ele não mexe mais do que a cabeça para observar o garoto, que tenta cochilar, volta e fecha os olhos.
Quando a noite já cai por inteiro, lá fora o homem baixo toca uma flauta doce, o garoto está cochilando, o velho fala, ainda com os olhos fechados:
- Então, tem um problema com a sua planta?
O pequeno desperta, desconsertado:
- Tenho sim... Quero que me ensine a torná-la imortal. – pára a exigência, assustado com o olhar (doce e resignado) do velho. Quero torná-la tão forte contra a morte que nada vai machucá-la, pra tudo vai estar preparada.
O velho solta um sussurro irônico e tenta se levantar, todo o corpo é um peso, parece não sentir dores, mas move-se muito lentamente.
- A imortalidade não é a máxima garantia de sobrevivência e adaptabilidade, senão a libélula-peixe, um bicho que come aquilo que defeca, seria quem mais se aproximaria desse segredo.
O garoto está atento, esperançoso.
- A coisa é mais singela, mais sutil, pequeno... – se aproxima da janela, faz um sinal irreconhecível.
O de expressões élficas entra. Apaga uma das velas e coloca a outra na mesa, trás uma cadeira - seus gestos são certeiros.
- Senta, garoto. – pede o velho. Preste atenção nisso daqui. – faz um gesto com dois dedos indicando para não tirar os olhos da chama.
A sala quase toda escura, só a pequena luz vinda da vela ilumina a feição dura do pequeno, tentando compreender a lição. A mão do garoto estava fria, percebeu que seu corpo inteiro tremia. A mão procurou a vela acesa. O calor parecia que chegava atrasado, o frio impedia que caminhasse. De repente, abre um sorriso fascinado: ao envesgar viu a chama duplicada, os olhos podiam ver, para sua visão a chama que sempre estivera escondida agora existe, daí o sorriso. O velho, então, se aproxima e fala muito baixo:
- Acreditar com os outros sentidos? Pode tocá-la?
O garoto tenta, afoito.
- Porque existiria um mundo onde apenas a visão acreditaria na existência desta outra chama, garoto? É possível que em cada sentido existam várias realidades acontecendo ao mesmo tempo, e que você acaba por escolher uma destas combinações de realidades. Se sua visão focaliza duas chamas, por que não acreditar numa realidade assim? Será que todos os sentidos teriam que acreditar conjuntamente para que você entre no mundo escolhido?
- Mas como vou enganar meus outros sentidos? A visão é fácil, é só continuar vesgo.
- Mas se o pequeno colocasse uma blusa e não sentisse mais frio, estaria enganando o corpo.
- Engano de quem? A quem engano? Não sou eu quem está com frio?
- O que é o frio sem um corpo para senti-lo, pequeno? O frio não existe sem suas sensações. Seu corpo é quem sofre, daí sabe que deve se aquecer para proteger-se, manter-se vivo. O frio é um aviso do sopro da vida, indicando como mantê-la. Ensinando a todo o momento como permanecer. Você sofre por saber que provavelmente não existiria mais. Morreria. Ora, se é a vida indicando como mantê-la, o que você poderia fazer se não segui-la? Acontece que agente acaba se acostumando com uma sensação de mundo e acabamos por banalizá-las. O frio, por exemplo, se você parasse para percebê-lo logo ficaria claro que você agia instintivamente colocando essa blusa. Nem observar como ele funciona você observava. O que ele é realmente? Ele não existe. Você que o cria. Aí é que ele passa a existir. O vento, sim, existe a par de seu corpo e de sua mente. Você o influencia, mas de forma muito limitada. Como o bater de uma borboleta pode influencia-lo muito mais. Mas..., agora, o frio é só de seu corpo. E é melhor você agir como o frio lhe pede, pois é uma mensagem, ditada pelo vento, pelo ar.
- É. Vixi!
- Aprenda a escutar todos os avisos que lhe são ditados, a todo o momento, e assim aprenderá a permanecer. – e, num sopro, apagou a chama onde os olhos do garoto estavam focados.

AMANHECE

Amanhece sozinho na casa, o pequeno. Sai esfregando os olhos. Nos fundos, encontra o élfico cuidando de um vaso. Percebe seu cacto tomando sol. O homem vai até ele e recolhe algumas sementes da flor e as colocam na terra do vaso que estava preparando. O garoto olha tudo como se não estivesse ali. O velho surge – assusta o pequeno pela aparição repentina – segurando um copo d’água. No vaso, joga cuidadosamente a água, só então se dirige ao pequeno:
- Tome..., - entregando o vaso - a melhor dose de eternidade que você pode oferecer a sua planta.
O garoto recolhe o presente.
- Era isso que estava perguntando..., e ninguém sabia me responder.
O velho só afirmou com um sorriso, o qual o pequeno respondeu. O homem élfico também abriu os dentes dele. E ficaram os três, ali no final da manhã, saboreando a simples resposta como fim da busca do garoto.