segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Entrevista: Bonaventure, escola libertária.

Entrevista com os representantes da escola libertária francesa Bonaventure.

Bonaventure, vivenciando um projeto libertário em educação!
(Parte II)

Retirado de: <Date">a-infos-pt@ainfos.ca>Date Sat, 29 Jun 2002 03:13:15 -0400 (EDT)
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Agência de Notícias Anarquistas-ANA > A escola funciona todos os dias?
Qual o horário?
Bonaventure < A escola funciona todos os dias, das 9 às 16:30 horas. Às
quartas ela funciona pela manhã e a tarde é livre. Temos os mesmos
horários das escolas francesas, por causa da demanda dos pais, pois
traria problemas para a vida das famílias ter crianças na escola com
horários fora da escola normal.
ANA > Vocês trabalham com os filhos dos imigrantes?
Bonaventure < Não, não há imigrantes em d'Olerón. Mas sempre temos entre
nós crianças recusadas pela escola dita normal: deficientes, com retardo
escolar, dificuldades sociais ou psicológicas. Nós possuímos quotas.
Somente 2 ou 3 crianças nessa situação entre 10. Senão nos tornaríamos
uma escola da "pobreza". Por outro lado, nós trabalhamos muito em
mudanças educativas com as escolas alternativas senegalesas.
ANA > Como repercutiu dentro da escola a chegada de Le Pen ao
segundo-turno das eleições francesas?
Bonaventure < Muito mal. Todos os militantes oleroneses de Bonaventure
pediram o voto para Chirac no segundo turno. Nós organizamos um debate
na escola e participamos de uma coordenação de associações cidadãs
d'Olerón. As antigas crianças de Bonaventure, agora adolescentes,
participaram das manifestações dos jovens.
ANA > O que é a Associação "Bout d'ficele"?
Bonaventure < Esta associação foi criada antes de Bonaventure e permitiu
a abertura da escola. Ela nos serve apenas para atuar junto aos bancos e
as administrações. Ela não tem vida associativa.
ANA > Somente um professor trabalha em Bonaventure? É o Estado que
determina a escolha desse professor? Qual o critério que utilizam? Esse
professor tem afinidades com as idéias libertárias? Expliquem um pouco
esse processo, pois não entendemos muito bem.
Bonaventure < Bonaventure não tem dinheiro o bastante para pagar quem
quer que seja. Temos somente voluntários. Uma pessoa que ensina na
escola primária, e um educador ou uma educadora. O Estado não intervém
em Bonaventure, todos os profissionais são militantes libertários ou
alternativos. Bonaventure se submete ao regulamento do governo.
Anteriormente tirávamos proveito de uma lei que permitia aos pais
"desescolarizar" suas crianças. Mas uma lei votada há 4 ou 5 anos anulou
esta fórmula, e obriga as famílias a matricular seus filhos em escolas
públicas ou privadas. Bonaventure lutou e resistiu à regulamentação
durante dois anos, mas hoje isso não é mais possível. Tivemos que
solicitar um estatuto de escola privada, o que permite ao Estado
controlar nossa escola. Nós temos que ter um diretor ou diretora
pedagógica responsável. Todos os professores militantes trabalham
igualmente na escola pública, e se eles se tornam diretores de uma
"empresa privada", eles perdem seu cargo de professor. Como não temos
dinheiro, não podemos remunerar ninguém. Como demandamos um trabalho
militante e todos os postulantes são professores na escola pública, nós
não encontramos ninguém até o momento para suprir essa carência. O que
faz com que não possamos abrir a escola no reinicio do período letivo
2002-2003. Temos ainda um ano para encontrar uma solução, senão seremos
obrigados a fechá-la definitivamente.
ANA > Quais os principais problemas para manter uma escola deste tipo?
Financeiro?
Bonaventure < Muitos problemas financeiros. Ao longo dos primeiros anos
uma rejeição quase geral dos militantes sindicais, pedagógicos e
libertários, valorizando as escolas do Estado e não vendo as escolas
libertárias, autônomas como laboratórios de práticas pedagógicas e
sociais capazes de promover um serviço social de educação.
ANA > Quais as diferenças entre uma escola libertária e uma escola
pública francesa tradicional?
Bonaventure < Em Bonaventure as crianças são as autoras de seu
aprendizagem e participam em todos os setores da gestão da escola. As
crianças com dificuldades (delinqüência, deficientes físicos ou mentais,
crianças que têm atraso escolar) são integradas e levadas muita a sério.
As famílias se integram na educação de seus filhos. Bonaventure está
muito aberta ao mundo exterior. Muitos interventores, não-pedagógicos,
vêm compartir seus conhecimentos. Em uma escola tradicional, inclusive
aberta, as crianças estão no centro do projeto educativo, mas não são
nem autores nem responsáveis por este projeto educativo. As famílias são
deixadas de lado, igualmente os não-pedagogos.
ANA > Os problemas mais comuns que se dão numa escola pública
tradicional (massificação das aulas, repressão, violência entre alunos e
com os professores, falta de motivações...) se vivem também neste tipo
de centros alternativos?
Bonaventure < Os problemas são muitos diferentes. As crianças se
responsabilizam, às vezes, em demasiado dos atos que cometem
(aprendizagem, gestão, cooperação e falta de normas na vida) e isso pode
chegar a ser muito duro para elas. O trabalho autônomo, sob a forma de
busca pessoal ou coletiva, as auto-avaliações, os trabalhos transversais
são difíceis de assimilar. Às vezes há quem não consegue ir bem nos
primeiros meses.
Existem, como em qualquer parte, problemas de normas de vida, mas todo
se negocia, é apresentado e é aceito. A violência é muito menor, as
crianças se explicam, negociam... Por outro lado, para as famílias, a
participação requerida é dura de levar ao longo de quatro anos.
ANA > Acabamos de ler "Frankenstein Educador", de Philippe Meireu. Nos
pareceu interessante, visto que considera que o objetivo final de toda
educação seria ajudar o aluno a construir sua liberdade, sua autonomia,
sem castigá-lo nem excluí-lo. Curiosamente, fala da educação como uma
aventura. É essa também a filosofia de trabalho de vocês, não?
Bonaventure < Conhecemos bem Philippe Meirieu, que assistiu uma de
nossas conferências. Não conheço o título do livro que mencionam, mas já
li várias obras de Meirieu. Nós pensamos que a liberdade, a
responsabilidade, a democracia, a experimentação e a criatividade não
podem ser aprendidas se não é vivenciando-a, experimentando-a,
equivocando-nos, avançando... Estamos mais próximos do movimento
Freinet, que dá de cara, um sentido social a educação. Esta liberdade
deve ser levada a cabo em todos os níveis da vida da criança e não
somente na classe. Por isso favorecemos os intercâmbios mútuos de
conhecimento entre as crianças. O adulto não está ali mais que para
aprender com a criança e não somente para ajudá-la.
No marco da experimentação o adulto experimenta também. Ele não é um
facilitador, ele se transforma num guardião da vida democrática e da
coesão educativa, ao qual não o impede de dar um marco cognitivo a
criança, mas este marco deve ser um suporte para a própria
experimentação da criança e não uma superestrutura rígida. Sob esta
perspectiva, não sabemos aonde vamos, mas o mais importante é a forma de
ir: o erro e o êxito de uma busca se converte assim no começo de uma
caminhada.
ANA > Em breve, Bonaventure estará completando 10 anos de vida. Nesse
período, o que mais marcou vocês?
Bonaventure < Na impossibilidade de criar alternativas reais, o
movimento libertário e alternativo fica muito no discurso ou nas
manifestações de rua, ou simplesmente nas reivindicações defensivas e
não criativas. Nós soubemos criar uma rede, já que estamos implantados
em uma zona rural, e somos pouco numerosos. A importância de valorizar
as famílias, de abri-las à militância social. A autonomia afetiva e
social das crianças que nunca estarão na excelência escolar, mas que tem
todos um percurso após Bonaventure exemplar, notadamente as crianças que
tenham as ditas dificuldades relatadas em outras respostas.
ANA > Quais são as perspectivas para este tipo de escola libertária?
Bonaventure < As escolas libertárias não têm futuro se não estão ligadas
a um movimento social e educativo alternativo. Demasiadas escolas
libertárias em todo o mundo estão fechadas em si mesmas, sem integrar-se
na busca coletiva de transformação social. Nós tomamos o desafio
inverso: vivemos por e para um movimento social, e tudo o que
experimentamos deve ser extrapolado (inclusive no marco da escola do
Estado) para construir uma educação a serviço de todos. Isto implica um
movimento social forte, o que não é o caso. Por isso Bonaventure perdeu
sua aposta de inicio, que era que esse movimento existiria e criaria
espaços educativos alternativos. Nos encontramos sós no seio do
movimento libertário francês. Sobrevivemos, mas essa sobrevivência será
viável em longo prazo? Não sabemos. Ainda assim, mesmo que o movimento
libertário francês não apóie Bonaventure (quiçá por causa da sua rigidez
organizativa, por que o movimento se contenta só em se opor, e não em
construir, porque há cada vez menos lugar na Europa para iniciativas
sociais etc), teremos tido o mérito de replantar a problemática
educativa no seio do movimento libertário, alternativo e sindical. Por
outro lado, o conjunto de pessoas, crianças ou adultos, que percorreram
um pouquinho deste caminho, se enriqueceram (e nós com eles) nesta
aventura, com suas coisas boas e ruins.
ANA > No Brasil não existe nenhuma escola anarquista. Contudo há
projetos de se criar uma em São Paulo. "Vários" compas estão envolvidos
com projetos de educação libertária, antiautoritária, tipo cursos de
alfabetização de adultos (o analfabetismo é muito grande no Brasil),
cursos preparatórios para alunos carentes tentarem ingressar em
universidades públicas, grupos de estudos etc. Nos últimos anos, mais de
uma dezena de livros, dissertações e teses sobre educação anarquista no
Brasil e/ou Pedagogia Libertária foram apresentadas. De alguma forma, as
idéias anarquistas em educação estão bem representadas por aqui.
Bonaventure < Ficaremos muito contentes de travar contatos com estas
pesquisas educativas libertárias, pois tentamos fazer o mesmo por aqui
na França, nos ponha em contato com eles, a título pessoal. Eu sou
responsável pelo setor de educação popular de Bonaventure, e trabalhamos
seriamente com as escolas, grupos de jovens e mulheres do Senegal. Sou
responsável pelo setor internacional do ICEM-Pedagogia Freinet e
desejamos colaborar com os pesquisadores do Brasil.

Bonaventure, Centre d'ecution Libertaire
35 Allée de L'Angle, Chaucre
17190 Saint Georges d'Oléron
França

http://perso.wanadoo.fr/bonaventure
bonaventure@wanadoo.fr

Colaborou: Eva Vela Bru, Valencia (Espanha) e Allyson Bruno, Fortaleza
(Brasil)
Agência de Notícias Anarquistas-ANA

"Educai as crianças e os homens não pagarão impostos."
Anônimo

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