Os três pontinhos dos três pontinhos
Bom dia e boa noite aos ilustres membros da academia.
Somos, por mais estranho que pareça, os três pontinhos, ou melhor, falamos aqui
em nome dos três pontinhos, pois um de nós não está presente por motivos
urgentes que aqui viemos, com a licença dos senhores, esclarecer.
Primeiro gostaríamos de levantar – tomou a palavra o
segundo ponto, numa postura solene – que a revolta e levante de nosso irmão vem
nos causado extremo constrangimento e desinteresse da comunidade pelo nosso
trabalho. Não sabemos direito mais o que representamos e a procura diminuiu
muito, nos deixando num estado de entorpecimento e dormência. Nos vemos cada
vez mais amolecidos e perdendo o gosto de existir, vivemos uma vida muito fria
e sem gosto comparada com a que levávamos quando nosso irmão estava conosco.
Sim, tempo de auge, de muito trabalho – retornou,
abruptamente, à palavra o primeiro ponto –, porém, também, extremamente
exaustivo, sendo essa sobrecarga de responsabilidades um dos motivos de
reivindicação de nosso rebelado irmão. Gostávamos de trabalhar em prol do ritmo
da narrativa, ali sempre nos sentíamos bem, confortáveis entre as palavras, nos
víamos bem acolhidos e efetuando importante papel à comunidade. Trouxemos aqui
uma, já amarelada fotografia, de nossa época de ouro:
Eu faço versos
como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Sempre nos emocionamos quando vemos fotos do passado
e me faz lembrar da importância de nosso trabalho pra história de nossa língua,
nos principais escritos – na maioria deles – estávamos presentes e, lhe
garanto, realizando impecavelmente a nossa tarefa. Reparem que nesse trecho que
trouxemos, nós três estamos quase sorrindo, vejam só! Ali representávamos o
ritmo da narrativa, uma respiração, uma suspensão da história contada,
gostávamos de fazer cumprir este papel de vitalidade da narrativa – éramos a
respiração, tanto para o escritor quanto para o leitor e, assim, nos víamos com
uma brilhante e fundamental responsabilidade em nossas mãos. Mas, logo a
sobrecarga – que citamos – se iniciou, começaram a nos usar como substituto do
burocrático “etc.”. Nada pessoal contra o etecétera, apenas não gostávamos de
sermos vistos daquela maneira. Achávamos – na época – que estavam, de certa forma,
menorizando a nossa magia, afinal éramos as poéticas e belas reticências, um
trio famoso pela sua singeleza e leveza, para, de repente, começar a sermos
posto em uma papel burocrático. É claro que estranharíamos tudo aquilo. Um copo
d’água, por favor.
Mas, aos poucos – o segundo ponto aproveitou da
brecha e tomou a palavra – fomos percebendo a magia daquela função, também.
Víamos o etc. como uma entidade burocrática, de início, mas, aos poucos,
começamos a enxergar suas possibilidades poéticas, era, também, um trabalho de
suspensão. Quando, por exemplo, numa frase se elencam vários elementos e
termina-se por convocar o etc., indicamos que para além daqueles elementos
mencionados existem outros que poderiam ser lembrados e citados, mas que por
hora já estava bom. Aprendemos, então, a ver a magia desse papel, de fazermos
as vezes de uma extensão da memória, de uma memória que não quer mais continuar
falando de tão extensa que ela é e, assim, começaram a nos convocar para
designar este vasto horizonte incabível na narrativa em questão e começamos,
assim a enxergar, o etc. de uma outra maneira.
É. Mas, foi esta abertura que demos que abriu brecha
para começarem a nos sobrecarregar. De início, tinha mesmo essa magia que o
segundo ponto está citando, porém, começamos a nos preocupar quando começaram a
finalizar textos conosco. Deixando após os três pontinhos um imenso vazio! Isso
lá era papel dos três pontinhos? Quem lidava muito bem com isso era o ponto
final, que sempre fechou muito bem os portões da narrativa, aliás, que
gigantesca responsabilidade, esse de fechar a saída das palavras! Era muito pra
nós, até porque não conseguíamos fechar a frase final, deixando-a em suspenso,
devido a nossa própria natureza. E assim, não só a frase final, mas o texto por
inteiro ficava aberto, em suspenso, como que requerendo uma continuidade que
não vinha. Nós, sempre acostumados a sermos seguidos de uma multidão de
palavras e pontuações, sempre no meio do bolo, de repente, nos vemos alçados no
final, ali, depois de nós só o silêncio da página, do espaço, do mundo, nos
víamos suspensos no vácuo, uma angústia estomacal quando começaram a finalizar
imensos romances daquela forma, nos sentíamos como num desfiladeiro de enormes
montanhas num deserto pedregoso onde tivessem nos colocado para servir de
trampolim para um abismo, um trampolim frágil de madeira carcomida, era assim
que nos sentíamos, quando olhávamos pra trás e víamos todo aquele mundo de
símbolos tendendo a escoar para aquele abismo em que estávamos fragilmente
suspensos. Aquilo era assombroso!
Era compreensível a atitude do último ponto, de
querer se ver livre daquela situação angustiosa, provavelmente o último ponto
viu coisas que nenhum de nós jamais vimos, nem o ponto final, o último ponto
estava numa relação de abertura de diálogo com o vazio e isso o perturbou
profundamente, não deve ser fácil estar cara a cara com silêncio tão vasto e
gritante. Sua relação é, assim, consequência de sua epifania que teve a partir
dessa relação. Confuso, ele um dia nos deixou, saindo em surdina. Sabemos que,
tivemos algumas notícias, que ele ficou um tempo vagando sem paradeiro, mas que
depois andou fazendo uns cursos de capacitação e que hoje vive de bicos de
“ponto final” em textos pequenos e sem muita importância. Sinto, eu que fui o
mais próximo dele, que essa foi uma maneira de lidar com questão tão difícil em
que se viu, vivendo como “ponto final” o último ponto pode ainda vislumbrar
cautelosamente o vazio, que tanto o assombrou e o fascinou e que modificou a
sua vida, mas quando se sentir angustiado com sua vastidão ele pode daí virar
as costas para o vazio, fechando o texto e, assim, amenizar o impacto de coisa
tão imensa, mas sempre que quiser e tiver coragem pode se virar novamente para
o vazio, tão misterioso. Vejo, então, seu abandono do trio como uma atitude
absolutamente compreensível e que devemos respeitar, mesmo sofrendo na pele as
consequências, cada vez mais fatais, da sua falta em nossa composição. Entendo,
apenas, que devemos aprender a viver com isso, sem esse membro e continuarmos
até onde for possível.
E é aqui que
discordo, em partes, de meu irmão, e essa rebelação tem servido horrivelmente
até para isso, para colocar nós um contra o outro, num conflito existencial
terrível. Não quero eu brigar com meus irmãos, mas vejo como muito preocupante
a atitude de nosso querido parceiro. Imaginem quanto de precedente está se
abrindo a partir da atitude de nosso ex-parceiro! Imaginem se esse tipo de
revolta se espalhasse por toda a linguagem! Como ficaríamos nesse caos, onde um
símbolo não quisesse mais cumprir a função que há tantos séculos vêm,
fundamentalmente, cumprindo, onde no lugar que sempre vejo uma vírgula veria um
acento agudo?! Tenho medo que tal postura se espalhe e contamine outros
elementos de nossa linguagem, assim todos nós correríamos o risco de nos
esfacelarmos, sem a densidade própria de nossas funções perderíamos a nossa
essência, aquilo que nos faz sermos nós mesmos! Esses dias, eu e o segundo
ponto, nos vimos em uma situação de termos de fazer um bico de “dois pontos”
pra um travessão entrar! Subimos um em cima do outro, foi terrível! Prefiro ser
uma trema!
Pois é. É isso, membros da academia. É para expressar
tamanha angústia de nossa situação que estamos aqui nesse púlpito. Não queremos
mais nos prolongar por muito tempo, não somos bons nisso de falar usando
palavras. Não nos sentimos bem realizando um papel alheio, penso que o último
ponto também não deve estar muito confortável no papel de “ponto final”, o
conheço, ele nunca atingirá a dureza e rispidez de um legítimo ponto final. É
por isso que viemos aqui pedir à academia que forme uma comissão que analise
mais cuidadosamente o nosso caso e que busque um contato cuidadoso com o último
ponto, sabendo de sua delicada condição psicológica.
E caso não haja colaboração da parte de nosso
ex-parceiro que tomem as devidas medidas para a abertura de um concurso, aberto
para toda a pontuação, que vise suprir o espaço vago deixado pelo nosso
parceiro. Agradecemos a atenção.
Obrigado pelo tempo de vocês e agradecemos se puderem
direcionar seus esforços a uma análise cuidadosa da situação de nosso irmão e,
se possível, um acordo com o mesmo, buscando sempre que esse acordo seja o
melhor para todos da comunidade, inclusive para o último ponto, nosso irmão.
Obrigado.