sábado, 14 de julho de 2012


Os três pontinhos dos três pontinhos

                Bom dia e boa noite aos ilustres membros da academia. Somos, por mais estranho que pareça, os três pontinhos, ou melhor, falamos aqui em nome dos três pontinhos, pois um de nós não está presente por motivos urgentes que aqui viemos, com a licença dos senhores, esclarecer.
                Primeiro gostaríamos de levantar – tomou a palavra o segundo ponto, numa postura solene – que a revolta e levante de nosso irmão vem nos causado extremo constrangimento e desinteresse da comunidade pelo nosso trabalho. Não sabemos direito mais o que representamos e a procura diminuiu muito, nos deixando num estado de entorpecimento e dormência. Nos vemos cada vez mais amolecidos e perdendo o gosto de existir, vivemos uma vida muito fria e sem gosto comparada com a que levávamos quando nosso irmão estava conosco.
                Sim, tempo de auge, de muito trabalho – retornou, abruptamente, à palavra o primeiro ponto –, porém, também, extremamente exaustivo, sendo essa sobrecarga de responsabilidades um dos motivos de reivindicação de nosso rebelado irmão. Gostávamos de trabalhar em prol do ritmo da narrativa, ali sempre nos sentíamos bem, confortáveis entre as palavras, nos víamos bem acolhidos e efetuando importante papel à comunidade. Trouxemos aqui uma, já amarelada fotografia, de nossa época de ouro:

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

                Sempre nos emocionamos quando vemos fotos do passado e me faz lembrar da importância de nosso trabalho pra história de nossa língua, nos principais escritos – na maioria deles – estávamos presentes e, lhe garanto, realizando impecavelmente a nossa tarefa. Reparem que nesse trecho que trouxemos, nós três estamos quase sorrindo, vejam só! Ali representávamos o ritmo da narrativa, uma respiração, uma suspensão da história contada, gostávamos de fazer cumprir este papel de vitalidade da narrativa – éramos a respiração, tanto para o escritor quanto para o leitor e, assim, nos víamos com uma brilhante e fundamental responsabilidade em nossas mãos. Mas, logo a sobrecarga – que citamos – se iniciou, começaram a nos usar como substituto do burocrático “etc.”. Nada pessoal contra o etecétera, apenas não gostávamos de sermos vistos daquela maneira. Achávamos – na época – que estavam, de certa forma, menorizando a nossa magia, afinal éramos as poéticas e belas reticências, um trio famoso pela sua singeleza e leveza, para, de repente, começar a sermos posto em uma papel burocrático. É claro que estranharíamos tudo aquilo. Um copo d’água, por favor.
                Mas, aos poucos – o segundo ponto aproveitou da brecha e tomou a palavra – fomos percebendo a magia daquela função, também. Víamos o etc. como uma entidade burocrática, de início, mas, aos poucos, começamos a enxergar suas possibilidades poéticas, era, também, um trabalho de suspensão. Quando, por exemplo, numa frase se elencam vários elementos e termina-se por convocar o etc., indicamos que para além daqueles elementos mencionados existem outros que poderiam ser lembrados e citados, mas que por hora já estava bom. Aprendemos, então, a ver a magia desse papel, de fazermos as vezes de uma extensão da memória, de uma memória que não quer mais continuar falando de tão extensa que ela é e, assim, começaram a nos convocar para designar este vasto horizonte incabível na narrativa em questão e começamos, assim a enxergar, o etc. de uma outra maneira.
                É. Mas, foi esta abertura que demos que abriu brecha para começarem a nos sobrecarregar. De início, tinha mesmo essa magia que o segundo ponto está citando, porém, começamos a nos preocupar quando começaram a finalizar textos conosco. Deixando após os três pontinhos um imenso vazio! Isso lá era papel dos três pontinhos? Quem lidava muito bem com isso era o ponto final, que sempre fechou muito bem os portões da narrativa, aliás, que gigantesca responsabilidade, esse de fechar a saída das palavras! Era muito pra nós, até porque não conseguíamos fechar a frase final, deixando-a em suspenso, devido a nossa própria natureza. E assim, não só a frase final, mas o texto por inteiro ficava aberto, em suspenso, como que requerendo uma continuidade que não vinha. Nós, sempre acostumados a sermos seguidos de uma multidão de palavras e pontuações, sempre no meio do bolo, de repente, nos vemos alçados no final, ali, depois de nós só o silêncio da página, do espaço, do mundo, nos víamos suspensos no vácuo, uma angústia estomacal quando começaram a finalizar imensos romances daquela forma, nos sentíamos como num desfiladeiro de enormes montanhas num deserto pedregoso onde tivessem nos colocado para servir de trampolim para um abismo, um trampolim frágil de madeira carcomida, era assim que nos sentíamos, quando olhávamos pra trás e víamos todo aquele mundo de símbolos tendendo a escoar para aquele abismo em que estávamos fragilmente suspensos. Aquilo era assombroso!
                Era compreensível a atitude do último ponto, de querer se ver livre daquela situação angustiosa, provavelmente o último ponto viu coisas que nenhum de nós jamais vimos, nem o ponto final, o último ponto estava numa relação de abertura de diálogo com o vazio e isso o perturbou profundamente, não deve ser fácil estar cara a cara com silêncio tão vasto e gritante. Sua relação é, assim, consequência de sua epifania que teve a partir dessa relação. Confuso, ele um dia nos deixou, saindo em surdina. Sabemos que, tivemos algumas notícias, que ele ficou um tempo vagando sem paradeiro, mas que depois andou fazendo uns cursos de capacitação e que hoje vive de bicos de “ponto final” em textos pequenos e sem muita importância. Sinto, eu que fui o mais próximo dele, que essa foi uma maneira de lidar com questão tão difícil em que se viu, vivendo como “ponto final” o último ponto pode ainda vislumbrar cautelosamente o vazio, que tanto o assombrou e o fascinou e que modificou a sua vida, mas quando se sentir angustiado com sua vastidão ele pode daí virar as costas para o vazio, fechando o texto e, assim, amenizar o impacto de coisa tão imensa, mas sempre que quiser e tiver coragem pode se virar novamente para o vazio, tão misterioso. Vejo, então, seu abandono do trio como uma atitude absolutamente compreensível e que devemos respeitar, mesmo sofrendo na pele as consequências, cada vez mais fatais, da sua falta em nossa composição. Entendo, apenas, que devemos aprender a viver com isso, sem esse membro e continuarmos até onde for possível.
                 E é aqui que discordo, em partes, de meu irmão, e essa rebelação tem servido horrivelmente até para isso, para colocar nós um contra o outro, num conflito existencial terrível. Não quero eu brigar com meus irmãos, mas vejo como muito preocupante a atitude de nosso querido parceiro. Imaginem quanto de precedente está se abrindo a partir da atitude de nosso ex-parceiro! Imaginem se esse tipo de revolta se espalhasse por toda a linguagem! Como ficaríamos nesse caos, onde um símbolo não quisesse mais cumprir a função que há tantos séculos vêm, fundamentalmente, cumprindo, onde no lugar que sempre vejo uma vírgula veria um acento agudo?! Tenho medo que tal postura se espalhe e contamine outros elementos de nossa linguagem, assim todos nós correríamos o risco de nos esfacelarmos, sem a densidade própria de nossas funções perderíamos a nossa essência, aquilo que nos faz sermos nós mesmos! Esses dias, eu e o segundo ponto, nos vimos em uma situação de termos de fazer um bico de “dois pontos” pra um travessão entrar! Subimos um em cima do outro, foi terrível! Prefiro ser uma trema!
                Pois é. É isso, membros da academia. É para expressar tamanha angústia de nossa situação que estamos aqui nesse púlpito. Não queremos mais nos prolongar por muito tempo, não somos bons nisso de falar usando palavras. Não nos sentimos bem realizando um papel alheio, penso que o último ponto também não deve estar muito confortável no papel de “ponto final”, o conheço, ele nunca atingirá a dureza e rispidez de um legítimo ponto final. É por isso que viemos aqui pedir à academia que forme uma comissão que analise mais cuidadosamente o nosso caso e que busque um contato cuidadoso com o último ponto, sabendo de sua delicada condição psicológica.
                E caso não haja colaboração da parte de nosso ex-parceiro que tomem as devidas medidas para a abertura de um concurso, aberto para toda a pontuação, que vise suprir o espaço vago deixado pelo nosso parceiro. Agradecemos a atenção.
                Obrigado pelo tempo de vocês e agradecemos se puderem direcionar seus esforços a uma análise cuidadosa da situação de nosso irmão e, se possível, um acordo com o mesmo, buscando sempre que esse acordo seja o melhor para todos da comunidade, inclusive para o último ponto, nosso irmão. Obrigado.

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