quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Ele estava tão perdido quanto ela, ele olhava para o teto procurando bolinhas de papel, chicletes e até aquelas assinaturas de casal com um coração em volta, sem dúvida estava perdido.Ela olhava para frente, na direção da porta que estava completamente escancarada, mas não procurava nada, estava à espera de alguma coisa, alguém que a levasse daquela sala lá para onde alqueles passáros estavam indo à minutos atrás. Alguém aí duvida que ela estava perdida?
A aula terminou e ele saiu apressado como se quisesse respirar lá fora, água, cigarro, toxinas. Ela permaneceu pra conversar com a professora, data, trabalho, entrega. Ele voltou apé para casa, cantava caetano, baixinho. Ela foi pra casa de carro, escutava beatles, bem baixinho. Depois do jantar ela foi procurar o controle da tv e ele fuçava os bolsos atrás de um isqueiro. Antes de dormir ele deitou-se para ler Caio Fernando e sem saber porque, pensou nela, acendeu um cigarro e ficou fazendo bolinhas de fumaça, acabou dormindo com o cigarro aceso. Ela deitou-se e ligou a tv, sempre dormia assim, hoje porém, sem querer pensou nele, trocou de canal e o programa já havia voltado dos comerciais, acabou dormindo com a tv ligada. Dormindo, longe das distrações urbanas, dos vicíos, um do outro, acabam se encontrando.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

MAYA DEREN - THE MOTHER OF ILUSION


Maya Deren é considerada a mãe do cinema experimental. Foi uma das pioneiras do underground americano, construindo uma filmografia de pura vanguarda cinematográfica. Seus filmes feitos nas décadas de 40 e 50 ainda são extremamente atuais e merecem sempre uma revisitação por quem trabalha ou deseja trabalhar com cinema. A obra de Maya Deren é essencial para se compreender melhor a sétima arte.
Eleonora Derenkowsky nasceu em 1917, ano da revolução russa, em Kiev, Ucrânia. Sua família emigrou para os Estados Unidos fugindo da ameaça do anti-semitismo, fixando residência em Syracuse, Nova York , quando ela tinha cinco anos de idade. Deren foi jornalista, escritora, ativista social, cineasta, atriz e praticante da religião vodu.
Maya Deren não só dirigiu como atuou em vários de seus filmes. No mesmo ano de 44 realiza At Land ("Na Terra"). Neste filme que subverte a idéia de tempo e espaço, podemos ver a figura de Deren caminhando numa praia e de um instante para outro em um campo, para, em seguida, no mesmo trajeto, aparecer rastejando em cima de uma mesa imensa onde há pessoas formalmente jantando e conversando sem ao menos notá-la (uma crítica à miopia da civilização). Ela parece não se mover, em vez disso o que se move são os lugares. Uma quebra radical com o realismo narrativo. No ano seguinte filma A study in choreography for camera ("Um estudo coreográfico para a câmera") onde o movimento da dança cria uma geografia nunca vista. Com sua Bolex 16 mm Deren explora os movimentos de Talley Beattey. Com a virada do pé do bailarino, numa rotação de 360 graus da câmera, ele pode vislumbrar lugares distantes, o interior de um museu, uma floresta, um pátio. A diretora trabalha com o potencial de transcendência da dança e do ritual, a estilização do movimento confere dimensão ritual ao movimento funcional. Maya Deren é uma pioneira na adaptação da dança para a câmera, fundiu as duas linguagens com extrema inteligência. Seus filmes por vezes lembram verdadeiros balés ritualísticos de imagens oníricas e tempo despedaçado.

Filmografia

The Witch’s cradle ("Berço das bruxas") - 1943 (inacabado)
Meshes of the afternoon ("Tramas do entardecer") - 1943
At Land ("Na Terra") – 1944
A study in choreography for camera ("Um estudo coreográfico para a câmera") - 1945
Ritual in transfigured time ("Ritual no tempo transfigurado") - 1946
Meditation on violence ("Meditação sobre a violência") - 1948
Ensemble for somnambulists - 1951 (inédito)Medusa - 1949 (inacabado)
The Very eye of night ("O verdadeiro olho da noite") - 1955Divine Horsemen: The living Gods of Haiti ("Divine Horsemen: Os deuses vivos do Haiti") - 1955 (finalizado por Teiji Ito)

Filmes sobre Maya Deren:

Invocation: Maya Deren - Jo Ann Kaplan – 1987
Im spiegel der Maya Deren ("No espelho de Maya Deren") - Martina Kudlácek – 2001

domingo, 12 de outubro de 2008

Hoje bateu na tampa da mesa pedindo silêncio e perguntou pro amanhã:
- Amanhã, vai fazer isso ontem?
No que o ontem respondeu:
- Fiz isso amanhã, professor!
- Pois levará um positivo, ontem. Vai, antes é pra agora!
- Antes não, professor, depois.
- Oh, sempre confundo..., o antes é o mais encurvadinho. Não é?
- Quase todos trocam. Liga não!
- Tento. Mas, vâmo que o foi já vai, todos. Até o sinal do final!
- Pô, professor libera aí!?
- Libero não.
Uóóóóó.
Retirado do livro de Allen Ginsberg “Uivo – Kaddish e outros poemas”, publicado pela L&PM, traduzido por Cláudio Willer. O texto aparece aqui sem o formato que aparece no livro por causa da limitação do blog que formata como ele quer. Publiquemos assim mesmo.

Nota:
Salmo Mágico, a Resposta & O Fim registram as visões experimentadas depois de tomar Ayahuasca, uma poção espiritual do Amazonas. A mensagem é: Alargar a área da consciência.
- A. G.

Salmo mágico

Porque o mundo está à beira do abismo e "ninguém sabe o que
virá depois
Oh Fantasma que minha mente persegue de ano para ano desce
do céu para esta carne trêmula
colhe meu olho fugitivo no vasto Raio que não conhece limites –
Inseparável - Mestre
Gigante fora do tempo com todas as suas folhas caindo - Gênio
do Universo - Mágico do Nada onde nuvens vermelhas
aparecem -
Indizível Rei das rodovias que se foram - Ininteligível Cavalo
saltando fora do sepulcro - Poente sobre a grande Cordi-
lheira e inseto – Cupim –
Lamentoso - Riso sem boca, Coração que nunca teve carne para
morrer - Promessa que não foi feita - Consolador, cujo
sangue arde em um milhão de animais feridos
Oh Misericórdia, Destruidor do Mundo, Oh Misericórdia, Cria-
dor das Ilusões Acalentadas, Oh Misericórdia, arrulho ca-
cofônico da boca quente, Vem,
invade meu corpo com o sexo de Deus, sufoca minhas narinas
com a infinita carícia da corrupção,
transfigura-me em vermes viscosos de pura transcendência sem-
sorial, ainda estou vivo,
grasna minha voz com o mais feio que a realidade, um tomate
psíquico falando-Te por milhões de bocas,

Alma minha com miríades de línguas, Monstro ou Anjo, Aman-
te que vem foder-me para sempre - véu branco do Polvo
sem Olhos -
Cu do Universo no qual desapareço - Mão Elástica que falou
com Crane - Música que toca na vitrola dos anos vinda
de outro Milênio - Ouvido dos edifícios de NY
Aquilo em que acredito - que vi - procurei incessantemente na
folha cachorro olho - sempre culpa, falta, - o que me faz
pensar -
Desejo que me criou, Desejo que escondo no meu corpo, Desejo
que todo Homem conhece Morte, Desejo ultrapassando o
mundo Babilônico possível
que faz minha carne sacudir-se em orgasmos do Teu Nome que
não conheço nunca conseguirei nunca dizer -
Dizer à Humanidade para dizer que o grande sino toca um tom
dourado nos balcões de ferro em cada milhão de universos,
eu sou Teu profeta volta para casa para este mundo para gritar
um insuportável Nome pelo odioso sexto dos meus 5 sen-
tidos
que conhece Tua mão em seu falo invisível, coberta pelos bulbos
elétricos da morte -
Paz, Solucionador onde embaralho ilusões, vagina de Boca Mole
que entra no meu cérebro por cima, Pomba da Arca com
um ramo de Morte.

Enlouquece-me, Deus estou pronto para a desintegração da
minha mente, desgraça-me no olho da terra,
ataca meu coração cabeludo come meu caralho Invisível coaxar
do sapo da morte salta em núm matilha de pesados cães
salivando luz,
devora meu cérebro fluxo Uno de interminável consciência, te-
nho medo da tua promessa devo fazer que minha oração
grite no medo -
Desce Oh Luz Criador & Devorador da Humanidade, arrebenta o
mundo na sua loucura de bombas e morticínio,
Vulcões de carne sobre Londres, em Paris uma chuva de olhos
caminhões carregados de corações de anjos para lambuzar
as paredes do Kremlin - a caveira de luz para Nova York -
miríade de pés recobertos de jóias nos terraços de Pequim –
véus de gás elétrico baixando sobre a Índia - cidades de
Bactéria invadindo o cérebro - a Alma escapando para as
ondulantes bocas de borracha do Paraíso -
Este é o Grande Chamado, esta é a Toxina da Guerra Eterna,
este é o grito da Mente assassinada na Nebulosa,
este é o Sino Dourado da Igreja que nunca existiu, este é o Bum
no coração do raio do sol, esta é a trombeta do Verme na
Morte,
Apelo do agarrão castrado sem mãos Doação da semente dou-
rada do futuro pelo terremoto & vulcão do mundo -
Sepulta meus pés sob os Andes, esparrama meus miolos sobre a
Esfinge, hasteia núnha barba e cabelo no Empire State
Building,
cobre minha barriga com mãos de musgo, enche meus ouvidos
com teu clarão, cega-me com arco-íris proféticos
Que eu prove finalmente a merda de Ser, que eu toque Teus Ge-
nitais na palmeira,
que o vasto Raio do Futuro entre pela minha boca para fazer
soar Tua Criação Eternamente Não-nascida, Oh beleza
invisível para meu Século!
que minha oração ultrapasse minha compreensão, que eu depo-
site minha vaidade a Teus pés, que eu não mais tema o
Julgamento de Allen neste mundo
nascido em Newark chegado para a Eternidade em Nova York
chorando novamente no Peru pela definitiva Língua para
salmodiar o Indisível,
que eu ultrapasse o desejo de transcendência e entre nas calmas
águas do universo
que eu cavalgue esta onda, não mais eternamente afogado na
torrente da núnha imaginação
que eu não seja assassinado pela minha própria doida magia, cri-
me este a ser punido nos piedosos cárceres da Morte,
homens entendei minha fala fora de seus próprios corações

turcos, ajudem-me os profetas com a Proclamação,
que os Serafms aclamem Teu Nome, Tu subitamente em uma
imensa Boca do Universo fazendo a carne responder.


1960


A resposta

Deus responde com minha condenação!
esta poesia apagada do lenho ardente
minhas mentiras respondidas pelo verme no meu ouvido
minha visão pela mão que cai sobre meus olhos para co-
bri-los

diante da visão do meu


esqueleto
- meu anseio de ser Deus pela trêmula carne barbada do maxilar
que cobre meu crânio como a pele de um monstro
Estômago vomitando a videira da alma, cadáver no
assoalho de uma cabana de bambu, carne do corpo
rastejando
rumo a seu pesadelo do destino que cresce no
meu cérebro
O barulho do estrondo da criação adorando seu Carrasco, o
salto
dos pássaros para o Infinito, latidos como o
som
do vômito no ar, sapos coaxando Morte nas árvores
eu sou um Serafim e não sei se vou para dentro do Vazio
eu sou um homem e não sei se vou para dentro da Morte –
Cristo Cristo pobre desesperançado
alçado à Cruz entre as Dimensões
para ver o Sempre-Incognoscível!

um som de gongo morto treme por toda a minha carne e um
imenso Ser entra no meu
cérebro vindo do longe que vive para sempre
Nada mais além da Presença poderosa demais para registrar!
a Presença

na Morte, diante da qual estou indefeso
transforma-me de Allen em uma caveira
Velho Caolho dos sonhos dos quais não acordo a não ser morto
mãos puxadas para a escuridão por uma horrenda Mão
- cego contorcer-se do verme, cortado - o arado
é o próprio Deus
Que monstruoso baile da escuridão anterior ao universo
volta para visitar-me como um comando cego!
e possa eu apagar esta consciência, fugir de volta
para o amor de Nova York e o farei
Pobre lamentável Cristo com medo da predita Cruz,
. Imortal ­
Fugir, mas não para sempre - a Presença virá, a hora
chegará, uma estranha verdade penetra o universo, a morte
mostra seu Ser como &fites
e eu me desesperarei por ter esquecido! esquecido! a volta
ao meu destino,
para morrer disso ­-
O que é sagrado quando a Coisa é todo o universo?
rasteja em cada alma como um órgão de vampiro
cantando
atrás das nuvens iluminadas pela lua­ -
pobre criatura vem agachada
sob as estrelas barbudas num campo negro no Peru
para depositar minha carga - morrerei de horror de
morrer!
Nem diques nem pirâmides, mas a morte, e devemos nos prepa-­
rar para essa
nudez, pobres ossos sugados até ressecarem por Sua
longa boca
de formigas e vento, & nossas almas assassinadas
para preparar Sua Perfeição!
O momento chegou, Ele fez Sua vontade ser revelada para
sempre
e nenhuma fuga para o velho Ser além das estrelas não irá
chegar ao mesmo escuro porto oscilante
de insuportável música
Nenhum refúgio no Eu, que está em chamas
nem no Mundo que também é Seu para ser
bombardeado & Devorado!
Reconhece Seu poder! Larga
minhas mãos - minha atemorizada caveira
- pois eu havia escolhido a auto-estima ­
meus olhos, meu nariz, minha cara, meu caralho,
minha alma - e agora
o Destiuidor sem cara!
Um bilhão de portas para o mesmo novo ser!
O universo vira-se pelo avesso para devorar-me!
e a poderosa irrupção de. música sai para fora da porta desu­-
mana –

1960

O fim

Eu sou Eu, velho Pai Olho de Peixe que procriou o oceano, o
verme no meu próprio ouvido, a serpente enrolada na
árvore,
Sento-me na mente do carvalho e me oculto na rosa, sei se al­-
guém desperta, ninguém a não ser minha morte,
vinde a mim corpos, vinde a mim profecias, vinde a mim agou­
ros, vinde espíritos e visões,
Eu recebo tudo, morro de câncer, entro no caixão para sempre,
fecho meu olho, desapareço,
caio sobre mim mesmo na neve de inverno, rolo numa grande
roda pela chuva, observo a convulsão dos que fodem,
carros guincham, fúrias gemem sua música de fagote, memória
apagando-se no cérebro, homens imitando eles,
gozo no ventre de uma mulher, a juventude estendendo seus
seios e coxas para o sexo, o caralho pulando para dentro
derramando sua semente nos lábios de Yin, feras dançam no
Sião, cantam ópera em Moscou,
meus garotos excitados ao crepúsculo nas varandas, chego a
Nova York, toco meu jazz num Clavicêmbalo de Chicago,
Amor que me engendrou retorno a minha Origem sem nada per­-
der, flutuo sobre o vomitório.
empolgado por minha imortalidade, empolgado por essa infini­-
tude na qual aposto e a qual enterro,
vem Poeta, cala-te, come minha palavra e prova minha boca no
teu ouvido.

NY, 1960

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Carta

(foi o Jorge quem me passou esta carta de Mario Quintana)
Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos , aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos! Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz. A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação. Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade. Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas. Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família. Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Mario Quintana