quarta-feira, 16 de abril de 2008

Cem anos, de supetão


E então ele se fingiu de morto e nunca mais deu as caras. Ela se agarrou nos dois meninos e escondeu suas coisas no mundo. Chorava que nem se desesperava mais. Conheceu um orfanato. Vida nova. Pros três. Ela pode juntar dinheiro em paz. Os meninos cresceram tortos e fortes. Adolesceram trabalhando de pedreiro. O mais novo teve onze filhos com aparência de caboclo apesar de serem índios. O mais velho gritava em balcão, apostou e ganhou, virou dono de um sítio arrendado pra usina. O sítio se desfez com sua morte, as partes viraram pagamentos de dívidas, consórcios e parcelas. As dívidas ainda se estenderam por duas gerações. Os consórcios viraram carros que hoje estão em quarta mão, senão em ferro-velho. As parcelas, todas foram arrastadas, mas todas pagas, algumas em acordo com o banco, outras com a doença de alguém. A geração das dívidas pagas deu então um salto. Se empanturraram de tecnologias, dava pra ficar mais dentro de casa. Confeccionaram seus primeiros herdeiros intelectuais e artistas. Foi o golpe no talo. Se espalharam como praga, em todas áreas. As famílias se desintegravam, cada um prum canto longínquo. Pararam os grandes casamentos, as bodas sumiram. A maioria de corpo fino, estéril ou sem prazer no sexo, o certo é que já não procriavam. Tiveram os primeiros esquizóides. A raiz já ia secando, quando apareceu a Ivonete. Vinha de fora e se casou com um violonista frustrado de dentro. Todas que restaram queriam ter os olhos brilhantes e o rosto cantarolante de Ivonete. Fogo, queimava, ardia, fervia..., saborosa. Não ficou um ano, mas seu perfume inebriou todos os desejos dos mais novos, a pontos que quando já tinham idade para cabelos pra baixo do nariz, procuravam sempre as que cantavam mais que compunham. Daí veio de cara trinta e cinco. Todos com emprego e estudos garantidos, de pequenos já os percebiam caçadores e galos-de-briga. Seus avós nos escuros da esquerda viram os netos tomarem as coroas da direita. Xingaram, mas não podiam mais bater... Fazer o quê? Já eram frustrados há anos mesmo... Já preparavam a saída estratégica do interior para o centro. Do centro para o litoral foram mais uns anos. Quando começaram a humilhar desempregados depressivos, vendedor ambulante e brincar de acertar ovo podre em vultos mal dormidos na madrugada tiveram problemas, os que eram doutores acharam melhor se organizarem e respeitar algumas regras, era mais higiênico. Amigaram-se com grupos de fora, as costas sempre mais largas. O Felipe é o herói da família, centrado, reto, tem trinta anos e já é juiz, vai se casar na outra semana. Um de seus filhos vai ser deputado, certeza. Ou coisa próxima. O adubo está garantido.

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