quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Não sou mais um guerreiro
quero brincar
fazer gestos vindos de mim
acordar bem cedo, ver o céu e voltar a dormir despreocupado
não sou mais um guerreiro
acompanho uma criança
me deixe no campo solto
pr'eu correr para qualquer lado
caçando encantamentos gigantes
nas raízes das plantas antigas
me deixe ali vendo os risos das árvores
sou daquela criança
abandonei minhas lanças, os ferros afiados,
as estratégias táticas pré-arquitetadas,
dou no máximo uns tapas desengonçados
no borrachudo que me pica o cotovelo
meu escudo, não quero mais erguê-lo
não sou mais um guerreiro
sou mais um caseiro, do mundo inteiro
e da criança que está comigo
vou brigar com quem?
aprendemos só quando aprendemos
e eu mesmo nem aprendi
baixo minhas armas
preciso estar leve pra brincar
deixo elas ali encostadas no canto
quero só voltar a sentir
no ponto central, equilibrar os opostos de dentro de mim
ouvir, inflar de ar, acalmar os gestos,
as lanças, as línguas, as mãos
deixar comigo eu mesmo
descarregar os apêndices
e o que me é alcançável à mão, colher
agora, pois o que está depois não está à mão
quero dividir com os mosquitos o debaixo do sol
não interromper o caminho das formigas
nem com elas quero brigar
(entre tantas possibilidades de guerrear)
tenho preferido o intervalo entre os dois tempos
gosto agora de dizer tranquilo
sem treta com as palavras
como sai, sem pressa nem artimanhas
tudo caminha pra um ponto completo
pingado tão simples
aconchego quando meus rumos cessam de procurar
e de repente, sem brigas, encontra
nos reanima
não sou mais
não toco cornetas, tambores
no máximo meu charango baixinho em casa
sou mais um sumido entre tantos sumidos
que habitam um pouco do mundo imenso
meu peito se amolece, minha coluna se endurece
não em armadura, em travesseiro
se ele chora, rasgo o mundo e resolvo
não estou para disputa, mas para zelo
aconchego
tenho saudade imensas de um dia longe
que nunca tinha sentido
ergo um menino na altura de uma fruta

e rio feliz, temos tanto tempo juntos...

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A infância sempre esteve aí.
Tudo tem infância. A noite tem infância... Assim como tudo tem velhice.
Não é um privilégio humano. Ou animal.
Nem uma situação que se passa e não volta.
A infância é o bem cedinho de tudo.
Está sempre, é uma maneira de manifestação do mundo.
Qual é a infância da palavra?
Quando ela é recém saída da não-existência e se assombra com  que encontra e tenta dizer tudo de uma vez? Ela é aberta.
A palavra na sua infância – ainda nem na boca – quer dizer sobre tudo, que na sua intensa abertura desafetada de traumas-regras-paradigmas-intensões, sente.
A palavra na sua infância diria quase junto com os sentidos.
Qual a infância dos sentidos?
Não são momentos que se passaram. Estão sempre aí, nem vão nem retornam. A infância está, agora. Acontecendo. Sempre. Inaugural e inédita.
A infância da grama, do poder, da tristeza, da noite, da alegria, da manhã, do instante, do que não-é e do que é.
Que eterno a infância de um átomo!
Como é a infância de um desejo? De um que vem em vão. Vêm e vão.
Pra entender o mundo, tem a infância do pensamento, é ali que se conecta bem próxima com o mundo, é ali, ah lá, é ali, estará sempre ali.
E se olhar no fundo de dentro dos olhos profundos de qualquer bebê, que seja o bebê da grama, do pedido, de uma confissão, do metal, do choro, do dinossauro, da ideia, qual seja... vai ver que a velhice não vem depois, que acontecem ao mesmo tempo, na mesma manifestação, neste beijo inseguro.
Tudo (você-nós) vive a infância da velhice, sustenta a velhice da infância, é velho e infantil.