quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

É de um humor escorregadio, sabichudo, espertinho o caipira, que é tão simplão que faz a piada e nem percebe que fez, ou nem faz mas parece que fez. Essa, agora, do pacto com o-da-outra-parte pra ser violeiro bom me parece como umas dessas piadas sabichudas, bem profunda.

Tem um que é assim: vai pelo trieiro do gado, de noite, no breu, só levando uma lamparina, não se deve andar muito, nem muito rápido, prestando atenção na noite, topará com o dito-cujo ali no trieiro, em forma de uma cobra cascavel, deixe então ela se enrolar nos dedos das mãos, só protegendo o dedão da esquerda... os pactos são cheios desta atmosfera tenebrosa, em breu medonho, obscura, cemitérios, cobras e apertos de mãos com vultos, um susto. Para ir fazer esse pacto tem de estar muito afim de ter coragem.

Mas, dizia, que pra mim isso é parte de uma piada, um engodão, mas fundamental: o aspirante que ouve sobre o ritual e chega a realizá-lo está disposto a ceder seu destino (que o cosmos vinha lhe facilitando) em troca de outro que até então não era o seu. Disse um famoso violeiro que pra aprender viola é fácil, só tem dois jeitos: ou nascendo de novo ou vai lá e faz um pacto com o pé-de-pato. Veja que a viola é parte do destino, o todo é quem traça como será seu encontro com ela e seguir o destino é saber ler os “símbolos”, ouvir e confiar no rumo que o “símbolo” lhe aponta, ir de encontro a ele é o “diábolo” (da etimologia grega “symbolo” é o que une e “diabolo” o que desune) , tem-se a opção de renegar o “símbolo” que lhe brilha e fazer um pacto com o “diábolo”, mas depois agüente a carga de se ir contra o destino. O “símbolo” é o que te leva naturalmente pra cima, pro sagrado, pra sua profunda verdade, lhe ensinando (com dor, também, como não) o desapego daquilo que não lhe auxiliará no percurso à alegria purificada. O “diábolo”, já, é uma trilha aberta pelas mãos da personalidade do homem, uma busca de uma experiência que quer viver na marra, forçadamente, pra favorecer um desejo egóico. Não vejo como o homem negar de vez suas investidas nos “diábolos” da vida, mas agüente a carga depois, no fim o “diábolo” infalivelmente e ironicamente se torna “símbolo”.

Ir lá na encruzilhada e apertar a mão do não-se-diz-o-nome numa noite escura e bisonha pra mudar a sua sina é sim um ato de coragem, mas que reveste o desejo egóico: se o todo já não te fez violeiro, porque querer se tornar um? Só pra alimentar um auto-vangloreio, mas como repeti, não vejo nada de abominável nisso, no fundo, as dificuldades de optar por traçar uma trilha por conta própria, contra o fluxo, vão lhe apresentar lições recheadas de “símbolos”, não tem pra onde correr.

Ir lá e fazer o pacto é como assumir que se entregou ao “diábolo” de vez, que está disposto a sofrer as cargas. Os violeiros rirão do ato, de ir lá se enfiar no escuro pra fazer não sei que estripulia, mas depois da piada amolecer as risadas os violeiros olham praquele que foi pro pacto como um preparado para encontrar a sabedoria da viola, mesmo que esta tenha fugido dele até então. Revela-se um sujeito de coração inocente ao permitir-se tais estripulias, um desejo tão grande de ser um bom violeiro que chega a ser uma busca comovente. Os violeiros passam, então, a ajudá-lo a enfrentar sua sina, a lhe facilitar a reconhecer as cargas que terá de carregar, passam a abençoar sua batalha.

Mas, no fundo, tocar viola é como ir ao encontro com qualquer outra coisa no mundo, todas elas são professoras, são setas para o invisível. As setas que a música desenha, especificamente, seduz muito, delas recebe-se lições retas e duras, mas dadas graciosamente, harmoniosas harmonizadoras, socos rítmicos no estômago, extasiante, gentileza ensinando gentileza.

Escrevo isto numa caderneta, apoiado no tampão das costas de uma viola.

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