terça-feira, 5 de agosto de 2008

Beethoven, eternamente

Em homenagem a centagésima postagemem nosso blog... tchã-tchã- tchã-tchãããã~~~~...


Era a iluminação baixa do velho anfiteatro universitário quem escondia as rachaduras e dava a tudo um aspecto acobreado vertiginoso, além de dor de cabeça em míope. Acopladas, idênticas, quinhentas, banquetas, de estofado, avermelhado, ficavam, chumbadas, uma nas outras, perfeitamente enfileiradas, em cinco desníveis, em forma de degrau. Viradas todas. Na direção de um baixo palco pretendente a portentoso. Onde o professor palestrava. Centrado na cadeira do centro. De microfone. Os alto-falantes espalhados pelas paredes que repetiam berrando o que o professor dizia e a arquitetura da sala já recomendavam a quem chegasse: “sente-se e escute, que o burro que fala é ele e o que baixa a orelha é você”. No patamar, atrás do degrau mais alto, a porta envidraçada, que insistia em ranger a cada novo curioso que entrava e a cada entediado ou atrasado que saía.
- Eis o cordão umbilical de um gênio...! – segurando o pote de vidro.
- Oh! Que coisa grotesca! – por entre o lenço tirado do bolso: ânsia.
- ... Fita morta, culpada das acusações sofridas pelo seu sombrio e zeloso guardião: Necrófilo! Cotólatra! Doente! Holfw Van Beethoven, tio de Ludwig, era, na verdade, um fascinado, por música, beterrabas e pelas pirâmides dos faraós. Esta última monomania levara-o a embalsamar mais de quinze placentas de amigos e parentes recém nascidos, entre elas a de Ludwig. Guardava-as num sigiloso sótão, num armário que só abrira as portas para que seu filho conhecesse o – até então – inútil e, no entanto, impecável tesouro de órgãos cadáveres. Talvez pelo delicioso sabor discreto do mistério, o armário úmido transformou-se em tradição familiar, e perdurou entre as gerações, até nossos dias, como se o aroma retardador da podridão vindo dos órgãos banhados em formol acabasse por impregnar também as madeiras do velho armário e a responsabilidade do segredo herdado. Vejam como um hábito doentio acabou por legar uma magnífica matéria prima aos artífices da ciência do século XXI. Notem como o insano atingiu seus objetivos de forma tão bem acabada através de Holfw a ponto deste utilizar-se de técnicas inteiramente racionais para efetivar seus desejos desvairados. Notem, vocês, agora, como a desrazão utilizando-se da razão provou-nos ser, também, razão ao nos legar a possibilidade de presenciarmos, com todos o seu brilho e nuance, a alma do maior gênio da música...!
- Oh! Que gesto!
- ... Com os olhos atentos, nossos grandes aparelhos de armazenamento de memória e ouvidos desajeitados, acostumados as atonalidades mais tortas e aos cromatismos mais encaixados, poderiam agora se prostrar, oferecer-se, humildemente, com a maior de suas capacidades, prontos a captar e aprender, pois estariam diante de um verdadeiro mestre, algo escasso nas últimas gerações. O solo secou a muito, esquecemos como cultivá-lo e as pétalas do artista, do novo, da poesia não mais desabrocham, a flor atrofiou. E sem ela, percebemos agora, tudo não serviu pra nada. Querem mais justificativas éticas do que esta? Felizmente..., repito, havia nos sobrado a fria e, cada vez mais, grandiosa ciência. Poderíamos, enfim, voltar a aprender como criar e, financiados pela A. C. C. ...diga-se de passagem..., recriamos nosso mestre através de um broto embalsamado que velava um patrimônio genético florescido na época em que o homem ainda possuía a verdadeira riqueza criativa de sonhar: o fogo do novo! Não podemos nos esquecer de mencionar a invenção surgida dos laboratórios iranianos: os espermatozóides de silício, sem os quais também não seria possível tal feito. Ludwig Van Beethoven está novamente entre nós para quebrar esta corrente que nos aprisiona no senso-comum! Só não sabemos onde.
Sentado, de braços cruzados, na última fila, na cadeira mais próxima da porta de saída, estava Bernardo. Meneava a cabeça, como se todo aquele discurso fosse absurdo. Ria-se quando pensava em sua grande ironia: estar ali. Entre o cabelo raspado, profundos vincos no rosto e a barba a muito esquecida, mantinha um nariz redondo e um olhar de ferro que agora parecia mirar para além das paredes do anfiteatro, tal a centralidade de sua atenção. Há vinte e oito dias procurava se manter em lugares quase invisíveis, porém estratégicos como este, se afastando arredio do convívio e das apresentações em público. Já o chamaram de misantropo, taciturno, calado, na dele, sereno, recluso, fantasma, segundo plano, espectador da vida, sombrio, silencioso como um gato, abatido, trancado, nas nuvens, solitário, fechado, obscuro, apagadinho, indistinto, sossegado, misterioso, lunático, quieto, silente, melancólico, soturno, lúgubre, fúnebre, insociável, sonhador, de canto, enigmático, nebuloso, nubiloso, recolhido, torto, bicudo, sisudo, reservado, calmo, tímido, parado, morgado, discreto. Tudo isso em menos de um mês. Acontece que variava por todos estes e muito escutava. Não entendia porque tagarelavam tanto, por isso não o fazia. Além, é claro, da discrição indispensável, pois sabia que era procurado, caçado tal como aquele cão que não aceitara a vida doméstica e, deixando de comer para emagrecer, escapara pulando por entre as grades do portão. Procuraram, até com retrato no jornal, mas nunca mais foi visto.
Queria ouvir a divulgação de sua fuga, após quase um mês de investigações secretas, ao mundo. Fazia um esforço terrível, pois já percebia a chegada inevitável do brumoso silêncio que cobriria seus ouvidos pelo resto da vida.
Procurou as horas. Estava atrasado, como de costume. Pegou a maleta e saiu, murmurando licença mal humorada. Rangeu. Depois de xingar a falta de óleo das dobradiças e um provável culpado pela falta, correu em direção ao estacionamento ajeitando a gravata. Se não estivesse engarrafada a avenida, chegaria em treze, entraria no banco com dívida de sete, quatorze, sobe um, doze.... Até arrumar o caixa, baixar as notas e conversar um assunto inadiável com o outro caixa, já se passariam mais uns vinte. Nada muito comprometedor, acabou por aceitar levar um prejuízo de duzentos pacotes por causa de um erro – qual nem havia sido o arquiteto, mestre-de-obras e, muito menos, pedreiro ou ajudante, só culpado – e cancelar a tal conversa inadiável, assim diminuía o atraso. Pagava para não ter de ouvir os chiados do subgerente da sessão, de quem dizia que, obviamente, não tinha nada a dizer.
No meio do expediente já havia re-roído todas as cutículas, seu corpo se retorcia no balcão, torto.
- Porque, quando somos crianças, as possibilidades da vida se demonstram, no mínimo, imensas? Podemos querer ser astronauta ou, até, jogador de futebol, presidente ou skatista profissional, de bombeiro a atiçador de fogo. Depois vamos crescendo e a vida vai se afunilando, até chegar o ponto em que nos vemos preparando nosso currículo para entrarmos numa fila que quebra a esquina, ainda sem nem o sol ter nascido, para então implorarmos por uma vaga na burocracia de uma enorme e pesada instituição... As pernas, quando pisam no chão, diminuem muito, os seus passos são pequenos e chega-se até a admirar, invejando, que alguém possa ter o privilégio de escolher entre encarregado da sessão de não-alimentos ou secretário-recepcionista. – pensava, enquanto sorria.
Após nove horas resolvendo complicações financeiras dos clientes do Banco Socrop e mais uma no engarrafamento da volta, Bernardo se jogou no colchão improvisado no chão do quarto alugado tentando acertar a respiração e calar a mente inquieta.
- Como até as minhas vontades ganharam roupagens diferentes desde de que escapuli. Antes acordava arrependido de o ter feito, abria os olhos e já me vinha um “por que todo dia tenho que acordar, por que todo dia, todo dia tenho de viver?” ou “não posso hoje morrer e amanhã vejo se vivo um tanto?”. Vivo agora para recolher material para meus sonhos. Noto o cansaço vindo. Os olhos pesados. O amolecimento. A poesia brilha em cada canto inusitado! Sólida como uma pêra, líquida como uma lágrima, gasosa como um reflexo fosco. A cada nova linha lida, a cada tombo de criança, a cada olhar perdido de mulher no ônibus, um despertar de uma revolta, uma letra triste contrastando com a música alegre, me carregam os ombros. Os arrasto e pesadamente os solto, sem medo do tombo, no colchão deixo os sonhos saírem de suas tocas, de início arredios, depois abafadores, entram roendo aquilo que a lucidez se esquecera de carregar em sua saída às pressas. Acordado, volto à labuta, fuçando com o olhar, procurando aquilo que me faça dormir, sempre com a dúvida: do que me meus sonhos gostam? Será que vão gostar disso aqui? Ai! E esse zumbido barulhento! Não é alimento nem para os meus pesadelos.
Estourou a barriga de um pernilongo – madrugada quente – na parede, usando a ponta do indicador. A mancha de sangue que grudara no dedo mostrou que o mosquito, astuto, no auge da loucura, já havia se antecipado. Achou um pedaço de pano, mas preferiu se limpar esmigalhando-o na parede: desenhou, usando do sangue como tinta e do assassino como pincel, fez um olho. Já, nele, tudo terminava em arte, até a morte, sem nem notar. Só conseguiu enfim desligar-se após passar as mãos nas cordas do violão recostado na parede, empoeirado.
- Mi..., lá..., ré..., sol..., si..., mi... – soltou as cordas enferrujadas.
“Amanhã tenho que acertar a luz”, foi seu último pensamento consciente e adormeceu, tranqüilo, eternamente, o mosquito.

*
De manhã, enquanto mastigava de boca aberta, passando a manteiga na bolacha.
- O afamado clone de Ludwig Van Beethoven foi encontrado nesta tarde pela guarda costeira americana. O fugitivo dirigia-se ao estado de Uzkhuklan, México. Perguntado sobre os motivos da fuga, o homem que carrega o peso dos genes do maior gênio da história da música erudita gritou simplesmente: “eu não sou um experimento!”. A polícia encaminhou o prisioneiro ao oitavo distrito californiano onde foi feita a confirmação genética. Seria o momento de botar numa balança todos feitos e objetivos da ciência de nosso tempo!?!... É o que nos responderá o médico Filipis Morins, no próximo bloco.
Desligou o televisor com os olhos aturdidos. A fisionomia do fugitivo na reportagem não negava uma estreita semelhança com o original Beethoven. O olhar duro, atento, o nariz arredondado, os cachos grisalhos nas têmporas! Usava até uma casaca alemã do século XIX.
- Assim estava praticamente se entregando. – pensou consigo, Bernardo.
Procurou o cartão, foi até o orelhão e discou o número do psicólogo. Hoje não iria trabalhar, a situação se complicara.
-Afinal, quem sou eu? - ...! - não sou fraco, mas tenho fracos. Tenho de ter mais fortes. Você está me entendendo? Você já me entendeu algum dia!?! Acreditei realmente, doutor. Eu, que só queria a ignorância de não saber quem eu sou. Por um mês andei pelos cantos na tentativa de passar despercebido, deixei a barba crescer, raspei a cabeça pra parecer o menos possível com o tal e olhe que eu nem o conhecia, nunca o tinha ouvido, até um tempo atrás, quando me deram um disco e pediram para que eu escutasse em segredo. Gostei tanto delas que queria ser o seu autor, ficava indignado por não ter sido o homem que havia concebido aquelas grandiosidades antes. É muita prepotência... Seria caso de esquizofrenia?!
- Hmmn...? Ah! Olhe..., mmm..., talvez você tenha percebido, Bernardo, que a vida só é devidamente degustada quando criamos. Quando aprendemos a focar tudo aquilo que conseguimos deter, dessa imensidão que a vida nos oferece, numa nova contribuição para a eterna criação do original, do inédito, do novo. É difícil vislumbrar uma idéia, aliás é a coisa mais difícil que já tive a oportunidade de realizar. Fácil é ruminar pensamentos já antigos, repetir o já posto. Como sempre digo.
- É... tentei compor, arrisquei escrever alguma coisa, mas não parecia ser quem eu era.
- Sempre acharemos que nossas criações são ruins, não complautênticas, se elas não forem realmente algo novo. Beethoven, talvez tenha sido a máscara que encobriu este vácuo de criações, tão constante hoje em dia.
Cismou calado, mão no queixo e bico oblíquo. O médico parecia querer deixar o silêncio formar dois monólogos absortos, calados.
- Deixe para a próxima. Acabou nosso tempo, pense nisso em outro lugar.
- Até, doutor.
Levantaram-se das cadeiras.
- Ôxi!
- Quê?
- Din-din.
- Ah! Cartão?
- Qual?
- Socrop.
- Ô.
Lá fora esperavam-no um camburão, oito policiais, o representante do Conselho Nacional de Bioética, o acionista majoritário da Advanced Cell Corporation, o representante do CIBE (Conselho Internacional de Bioética), um helicóptero, sua filha, os representantes de quatro telejornais, quinze de jornal impresso, dois de rádio, um de um ou blog ou flog, bop, cia, além de trinta e seis curiosos que completavam a horda de cidadãos guardiões.
Lá dentro, o psicólogo olhava para a porta lhe chamando de traste.
- No entanto, nunca seus bolsos estiveram tão cheios! – bradava a porta.



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