segunda-feira, 9 de setembro de 2013

                Meu pai me ensinou que a minhoca tem uns dez corações e que por isso tinha de enfiar a ponta afiada do anzol de uma ponta da minhoca a outra, rasgando por dentro um por um dos corações, senão ela não morria. E ela nunca morria, por mais metódico que eu fosse, tentando explodir os corações enfileirados atravessando a aço o corpo esticado da minhoca, que se contorcia, desesperada, ela não morria. Ficava ali na ponta, empalada, com pequenos movimentos rígidos, zonza de tanta dor. Meu pai não me explicou que por uma ponta ela comia e pela outra ela cagava, eu imaginava duas cabeças, uma para cada ponta, se uma delas quisesse ir para um lado a outra aceitava, estavam sempre juntas, siamesas. Será que nunca brigavam? E o corpo ficaria ali, entre as duas, tentando acalmar a rixa? E quando o corpo era o motivo da briga? Qual cabeça se calava mais? Uma macho e outra fosse fêmea, será? Não me lembro  o que eu criança respondia, me lembro que se perguntava e investigava. Fuçava na minhoca. Via o pai partindo a minhoca em dois - não precisava de tudo aquilo de minhoca quando queria um peixe pequeno - jogava a outra metade no pote, a criança observava, a metade pulando de sofrimento. Será que se enfiava na terra e se criava a outra metade de novo? Dessa eu lembro que queria que a resposta fosse sim.
                A minhoca era só um meio, uma isca para pegar outro bicho. Era quase como um farelo de pão com dez corações e duas cabeças. Podíamos rasgá-la como quiséssemos, tinha um monte delas ali. Mas, hoje, tentando tirar de mim a educação de meu pai, imagino que talvez cada um desses corações sinta uma coisa diferente, em um ritmo diferente. Talvez um esteja mais afobado que um outro que bate calmo. Outro se sente pleno, cheio de si, empolgado com o que virá, enquanto o de trás pulsa triste, sem muita esperança, ainda um outro sente uma pontada de saudade, um outro acabou de se apaixonar, um outro já foi apaixonado pela mesma paixão e está começando a se abrir pra novidades, um outro sempre foi o mais trancado dos dez, um outro sempre gostou do que  o outro lá da ponta sentia, mas não conseguia senti-lo muito bem porque no meio tinha um que batia sempre desconfiado, não se deixando pulsar.
                Talvez todos os corações fossem apaixonados um pelo outro e a minhoca fosse essa explosão de sentimentos a cada momento diferente, tendo de lidar com tudo aquilo que sentia se arrastando debaixo da terra, comendo terra e alimentando a terra, sempre à flor da pele, jorrando sensibilizações vindas das somas e das diferenças dos corações enfileirados que eu ia explodindo, um a um, com um anzol fino e afiado, enquanto a minhoca se contorcia nas pontas do meu dedo de uma dor incrível, à flor da pele, sentida pelos dez corações ao mesmo tempo. Era a não percepção daquele sofrimento o ensinamento de meu pai, uma cegueira a mais.
                E, de repente, o peixe caia, puxado pra grama, com os olhos atravessados pelo anzol, aos urros de alegria o peixe morria de asfixia. "Quer tirar o anzol?", eu não queria.